“Quereis saber o que é a alma? Olhai um corpo sem alma”. As palavras do sermão do padre Antônio Vieira, ditas por meu pai, me impressionaram desde a infância. Eu não sabia, mas estava se formando ali, na cabeça do pequeno obsessivo, uma crença dualista: existem as coisas do espírito e existem as coisas físicas (“res cogitans; res extensa”, Descartes, séc. XVI). O Iluminismo, a idade Moderna, suas classificações e o império da razão, são o paraíso do obsessivo, e não estou falando mal da obsessividade, não: ela é preciosa, desde que não se apodere da gente (neurose obsessiva).
Mas, de fato, seu instrumento de organizar as coisas em ítens atrapalha um pouco na compreensão da realidade, pois ela não tem fronteiras tão marcadas: o ser humano não é assim tão diferente dos outros bichos, por exemplo.
A questão dualista, a separação de corpo e alma, sofreria um questionamento interessante para mim, à medida que os anos se passaram.
Tudo começou com o abandono da fé: se eu não era mais crente, então não havia mais alma. Mas isso deixava uma pergunta: o que sou eu, aquele que pensa, logo existe? É só corpo?
A informática veio para abrir um caminho de resposta: hardware e software, a máquina e o programa, um não vive sem o outro. Transportei isso para mim e fui ficando encantado: sou, desde minha primeira célula – o ovo fecundado – um hardware rodando um software. As informações genéticas (software) daquele ovo começaram por construir uma máquina cada vez mais complexa, apta a rodar programas mais e mais complexos. A coisa não parou, ao ponto que minha indissolúvel máquina/programa está escrevendo este artigo agora.
Ah, agora fazia sentido a afirmação de Freud de que nosso Eu é principalmente corporal: olho meus dedos digitando, e me reconheço tanto quanto ao me olhar no espelho. Exulto ao perder peso, pois me pareço mais comigo mesmo. É uma concretude que equivale ao abstrato: quando sou amoroso, pareço-me comigo, me sinto bonito (nova fronteira que cai: a ética e a estética se confundem).
Mas nada equivale às fronteiras que vêm caindo, justamente entre as formas de amor que os gregos classificaram: Eros (o amor/excitação sensual); Ágape (a camaradagem) e Filia (a amizade), sentimentos que meu superego separava com rigor, começam a ser olhados de forma diferente. Será mesmo que Eros só existe quando eu tenho uma ereção? Um abraço gostoso, um cafuné despretensioso, não são eles uma excitação dos sentidos? Nossa cultura, tão chameguenta que é, não nos ensina que Eros pode estar presente no amor que temos por filhos e por amigos? Quando eu penso em quantos melhores amigos se separaram por medo de estarem gostando “demais” um do outro. Que sofrimento inútil, típico de obsessivos exigentes de “pureza”.
E o que dizer do contrário, da defesa que faço do amor companheiro entre casais, o que mais é senão a defesa da amizade – Filia – para quem tem uma relação predominantemente erótica?
As coisas melhoraram muito com essas fronteiras fluidas. E hoje posso dizer, ao olhar um “corpo sem alma”: não é um nem o outro, são apenas restos mortais.
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