A contar pela quantidade de assaltos a residência, arrastões e paradinhas de sinal de que tenho tido notícia, o efeito colateral das UPPs começa a se fazer sentir nas ruas do Rio de Janeiro.
Talvez as estatísticas provem o contrário. É um parâmetro subjetivo, o de se basear no que se vê ao redor, mas são tantas ocorrências com pessoas próximas que desconfio não estar enganada.
Meu filho gosta de andar de skate na bem-vindíssima pista recém-inaugurada na Lagoa. Por anos, o Gil, professor que dava aulas na quadra improvisada, organizou abaixo-assinados pedindo a construção de uma rampa ao lado do antigo bowl. Hoje, centenas de praticantes lotam o espaço semanalmente. A iniciativa da população e a boa escuta das autoridades funcionaram harmonicamente. Tudo exemplar.
O problema é que o lugar virou um foco de assaltos leves que visam, justamente, a moleques como meu filho.
Um amigo dele já foi abordado tantas vezes que criou técnicas para escapar. Outro dia, mentiu dizendo que havia acabado de entregar tudo a um assaltante. O bandido acreditou e o deixou andar. Até os larápios estão conscientes de que a concorrência anda acirrada. De outra vez, esse mesmo menino se livrou da limpa porque lembrou o pivete de que havia pago um refrigerante a ele dois dias antes. E ainda teve um homem que o mandou deixar o par de tênis atrás da árvore e sair descalço. Esse se autoproclamava o Robin Hood da Rodrigo de Freitas e não deu espaço para conversa.
Tenho um casal de amigos que mora há mais de dez anos em uma casa nas cercanias da Rocinha, em São Conrado. Eles jamais haviam enfrentado invasões até que, um mês atrás, deram de cara com um vulto tentando escalar a palmeira para alcançar o 2º andar. A casa, agora, está cercada por arame farpado, um rottweiler bebê foi agregado à família e um vigia faz a ronda 24 horas por dia.
Não é muito diferente das paliçadas dos portugueses do Brasil Colônia, em pânico com os ataques dos nativos comedores de gente.
Do lado de cá da divisa dos Dois Irmãos, a casa de outro conhecido, no Alto da Gávea, foi a única que só sofreu tentativa de roubo; os dois vizinhos foram amarrados e depenados em duas madrugadas seguidas. Um dos ladrões teria dito que não gostava do que estava fazendo, mas, no momento, não lhe sobrava outra opção.
O fim do lorde da bandidagem, que controlava o território com poderes de rei e coração de carrasco, sofreu um baque considerável. A velha ordem de não criar problema com a vizinhança acabou. Agora, o cada um por si e Deus contra todos virou o lema da contravenção.
São Paulo, ao contrário, enfrenta investidas armadas proporcionais ao seu poderio. São ações organizadas e execuções precisas. Apavorantes. A violência de São Paulo cresceu em estratégia; a do Rio, tudo indica, ficou mais primitiva.
Na Rua Marquês de São Vicente tem um homem atrás de um poste no longo muro da PUC especializado em furtar estudantes que descem a ladeira em direção à zona comercial do bairro. Ele trabalha no local. Como policiar tantas esquinas?
Para espanto meu, um amigo francês afirmou que nenhuma mulher anda sozinha à noite em Paris. Não visito a Cidade Luz há um bom tempo e, se não fosse pelo alerta, certamente me arriscaria a levar facadas no Quartier Latin. O perigo das ruas é a única real frustração que sinto de viver no Brasil. Andar sem medo era um dos grandes prazeres da velha Europa e da rica América. Não mais.
A civilização trouxe a ilusão de que o pavor atávico de fazer parte do cardápio habitual dos grandes carnívoros havia chegado ao fim. Pura ilusão. Hoje, as leis anti-imigração do Primeiro Mundo e os condomínios fechados do Brasil são duros paliativos para a mesma desgraça.
O verso “Chame o ladrão” da canção se referia ao pavor da repressão policial durante a ditadura militar. Diante dela, melhor o ladrão. Quarenta anos depois, o contexto muda, mas os versos continuam oportunos. Com tristeza, dá vontade de chamar o ladrão para organizar o exército de desesperados que se viu obrigado a viver de bico.