“Uma coluna quinzenal vai ser produzida por uma não escritora,
até o pescoço de trabalho, em turnê mundial?”
“Mas como assim, Adriana Calcanhotto, você a partir de agora vai escrever para O GLOBO? Melhor dizendo, a que horas você poderia escrever para O GLOBO? E as pilhas de clássicos na bancada, por ler? E a correspondência atrasada? E as encomendas das cantoras, de canções novas para seus novos discos? E o prometido show para as meninas do Orfanato Santa Rita adiado para o dia de São Nunca?”
— Nunca aprendi a dizer não.
— E, por conta desse detalhe, uma coluna quinzenal vai ser produzida por uma não escritora, até o pescoço de trabalho, em plena turnê mundial de voz e violão?
— Posso chamar a coluna de “Eu ando pelo mundo” e fazer dela uma espécie de diário de bordo, revelando a falta de glamour total que é uma turnê nos seus bastidores.
— Você vai dar como nome da coluna uma frase, um verso que seja, que começa com “eu”?
— Na verdade, acho que não preciso de um nome. Minha editora disse que posso fazer o que eu quiser.
— Com a pontuação inclusive? Sua editora por acaso sabe que você não sabe pontuar, que escolheu escrever letra de música porque não sabe o que fazer com as vírgulas, querendo crer que letras de música estão isentas dessa norma?
— Ela disse que tem um pessoal que cuida disso, que faz o trabalho sujo. Devem ser tipo aqueles que mexiam nas vírgulas da Clarice Lispector e ela ficava fula da vida. Então, se mexiam nas dela, que começava livros com uma vírgula, por que motivo não mexeriam nas minhas? Para facilitar, posso já mandar os textos sem vírgula nenhuma, que algum aplicativo ou estagiário faz o resto. Minha editora me deixou muito à vontade para não pontuar se não quiser.
— Se não puder, você quer dizer. A propósito, a sua editora está a par da sua agenda?
— Não, ela só me convidou para escrever para o prestigioso periódico.
— Ah, só? No prestigioso periódico onde escrevem o Verissimo, a Cora Rónai, o Francisco Bosco?
— Exatamente.
— Minha nossa, e agora?
— Como eu ia dizendo, vou escrever no Segundo Caderno do GLOBO de domingo quinzenalmente.
— E sobre que assunto?
— Como assunto? Moro no Rio de Janeiro, o que não falta é assunto. O prefeito se engalfinha com um cidadão inconveniente, as pessoas acham que chegar atrasado e jogar lixo no chão é sinal de poder, os motoristas cariocas em dias nublados trocam de pista sem parar num zigue-zague de tontear. E tem o Brasil, onde Renan Calheiros é presidente do Senado, o governo brasileiro demonstra simpatia pelos ditadores africanos riquíssimos, que não cuidam de seu povo, ora, assunto.
— Bem, e quando começa?
— Já começou, na verdade. Daqui a 15 dias publico um texto me apresentando aos leitores e estará iniciada a jornada.
— Com tanto assunto, pretende iniciar com um texto falando de si mesma?
— Minha editora acha delicado que eu me apresente aos leitores.
— Se houver. A propósito, em que estado de consciência estava a sua editora quando ela propôs esta temeridade, sabe dizer se ela tinha tomado alguma coisinha, uma substância alucinógena qualquer, algum remedinho, ou um coquetel de fármacos para gripe ou algo do gênero?
— Não me pareceu. Ela bebeu um mate e tinha uma resposta na ponta da língua a todas as questões que levantei, como meu medo do compromisso, prazos, assuntos, vírgulas. De qualquer modo, nunca aprendi a dizer não.
— Então, mesmo não acreditando muito, só me resta dizer seja lá o que Deus quiser..