A gente tem várias aqui em casa. Pelo menos uma vez por dia
eu tenho vontade de afogar meu marido na pia. E vice-versa. Toda manhã, ele se
irrita porque eu deixo cair um pouco de erva-mate no balcão da cozinha ao
preparar meu sagrado chimarrão. Ele chama de “pozinho verde”, e uma vez teve o
desplante de usar a bomba para tomar leite com toddy. Pela heresia ficou um ano
sem pisar no Rio Grande do Sul. Ele diz que não me custa nada limpar o “pozinho
verde”, e não me custa mesmo, mas eu respondo que é um ato de resistência
contra a globalização. E, desde que ele implicou a primeira vez, oito anos
atrás, se não cair na hora, eu mesma derrubo, só para manter posição.
Já eu implico que ele não desvira as mangas das camisas
quando bota as ditas no cesto de roupa suja, o que me dá mais trabalho, porque
apertar os botões da máquina de lavar é uma das minhas árduas tarefas na agenda
doméstica. Tenho certeza de que ele faz de propósito, mas ele inventa uma cara
de vira-lata toda vez que eu reclamo. E então denuncia que eu lambuzo o chão de
amaciante. Eu tento não lambuzar, mas não consigo. Tenho duas mãos esquerdas e
elas não se entendem.
Deixo tudo cair no chão e deveria mesmo ser proibida de
comer em público, porque sempre derrubo metade na roupa. Na primeira vez em que
fui levada para comer comida japonesa, quando me mudei para São Paulo, foi uma
humilhação. Estava com o povo chique da redação da revista e eu, que me
atrapalho com o garfo e a faca, não conseguia pilotar aqueles pauzinhos. Aqui
em casa só temos facas sem fio, uma precaução para eu manter os meus dez dedos
por pelo menos mais uns cinco anos.
Ele rouba minha escova de cabelo super máster plus. Eu sumo
com a tesourinha de unha. Eu empesto a casa com a minha mania de comer sardinha
em lata, ele sempre esquece o celular quando já estamos dentro do elevador. Eu
faço um supermercado ao lado da cama, ele enche o banheiro com revistas de moto
(!!!).
Ele liga o ar-condicionado até quando lá fora faz menos de 10 graus, eu
desligo o ar-condicionado mesmo que faça mais de 30. Eu durmo cedo e acordo
cedo. Ele vira a noite e dorme de dia.
Ele gosta de ficar com os pés
descobertos mesmo no inverno, eu durmo de meia até no verão. Eu falo de menos,
ele demais.
E assim vamos nós pela vida, discutindo por coisas bobas porque
não nos desentendemos por nada fundamental.
Como hoje, quando ambos estávamos
com preguiça de cozinhar. “Comida chinesa ou frango com polenta?”, ele
pergunta. Mas sabe muito bem que eu prefiro frango com polenta porque o moço do
restaurante da esquina traz junto feijão com arroz.
Eu cedo, porque sei que ele
adora comida chinesa e eu adoro ele, mas solto um humpft para marcar meu
sacrifício. Aí ele diz: “Que bom que a gente não precisa sair para caçar um
mamute, né?”. É, bem bom mesmo. E já entramos numa digressão absolutamente
irrelevante sobre nosso papel na pré-história. Nem digo a ele que quem teria de
sair atrás do mamute era ele, porque já estou rolando no tapete da sala.
Depois dou um suspiro bem feliz. Sim, o futuro do planeta é
incerto e o nosso é terrivelmente certo. Mas, amanhã, pelo menos amanhã, eu
tenho certeza de que ele vai implicar comigo por causa do “pozinho verde”.