O que esse gesto universal
ensina
sobre os seus sentimentos
Proximidade é coisa que se
aprende. Demora algum tempo para que a gente relaxe na presença do outro e
extraia desse contato o prazer e a paz profundos que a intimidade física
proporciona. Quando isso acontece, a gente descobre, invariavelmente, que está dormindo
de conchinha.
Não sei o que existe nessa
posição que a torna tão universalmente afetuosa. Pense nos filmes que você viu
ou nos romances que você leu: quando o narrador da história quer sugerir que o
casal está muito próximo ou apaixonado, faz com que ele a abrace pelas costas e
os dois adormeçam “como duas colheres”, que é o jeito como os americanos
descrevem essa posição. Talvez exista a mesma expressão em japonês, mongol ou
na cultura tuaregue, do norte da África. Eu não me espantaria. Sendo o corpo
humano igual no mundo inteiro, é provável que diferentes culturas usem as
mesmas formas corporais para demonstrar carinho e dividir conforto.
No livro Tristes trópicos,
do antropólogo francês Claude Levis-Strauss, já morto, há um momento em que ele
descreve como os índios nômades nambikwara, do norte do Mato Grosso, (cuja
cultura material era tão pobre que nem redes ou cabanas eles tinham), dormiam
aglomerados em volta da fogueira, nus sobre o chão nu, os casais abraçados em
conchinhas para se esquentar e proteger. Talvez venha daí, do tempo que éramos
tão selvagens e tão pobres que só tínhamos o nosso próprio corpo, e o corpo dos
outros como nós, nossa disposição ancestral de abraçar pelas costas e encaixar
o rosto nos cabelos da mulher querida – para esquentar e proteger.
Apesar do progresso e da
nossa imensa prosperidade material, acho que às vezes ainda nos sentimos como
índios Nambikwara. Ainda despertamos assustados, no meio da noite, assaltados
por medos e inquietações tão humanas, tão profundas, que nem sabemos de onde
eles vêm. Nesses momentos de vulnerabilidade, quando nos sentimos minúsculos e
irremediavelmente solitários, abraçamos o corpo da parceira ou do parceiro como
se ele fosse um refúgio, talvez o último, da nossa integridade ameaçada.
Mas isso, como eu disse no
início, leva tempo. Mesmo o instinto que parece se esconder atrás do abraço de
conchinha precisa ser aprendido. Lembro de um tempo, quando eu era garoto, que
a proximidade de outra pessoa na hora do sono não era assim tão confortável.
Aplacado o desejo, eu procurava distância e liberdade de movimentos. Só aos
poucos fui percebendo que havia naquele jeito de ficar um aconchego e uma calma
que eu não conhecia. Como tantos dos gestos que compõem o nosso repertório
afetivo, o abraço cheio de sono e de confiança teve de ser aprendido.
No interior das relações
ocorre o mesmo processo de experimentação e aprendizado. Para muitos, essa
coisa de abraçar não funciona logo de cara. É preciso tempo e proximidade para
que o gesto se torne natural. Há uma parceria silenciosa nos nossos enlaces que
precisa ser construída. É inútil apressá-la e talvez haja relações em que elas
nunca se manifestem. Talvez por causa do temperamento dos envolvidos. Talvez
pelo caráter mesmo do que existe entre eles.
Sei que algumas pessoas
recusam até de forma inconsciente esse tipo de contato afetuoso. Elas o
associam a acomodação. Escolhem manter a relação no que eu chamo de estágio do
beijo, quando a fome e a curiosidade pelo outro ainda não foi saciada e parece que
nunca será. Nesse momento sublime dos agarros, o acesso ao corpo do outro é
100% erótico. Apenas mãos, saliva, palavras. Tem gente que se embriaga disso e
não quer sair. Evita o passo seguinte, em que o barato físico pelo outro dá
lugar a outro tipo de coisa, mais suave e mais silenciosa – e os beijos
famintos são substituídos, sem que se perceba, pelos abraços de conchinha. Não
sei se alguém já fez um estudo científico sobre isso, mas parece que a
convivência simultânea entre beijos famintos e abraços de conchinha é
impossível no longo prazo. Vocês me digam.
Da minha parte, sinto que
há opções a fazer e que a gente as faz todos os dias, em favor do abraço de
conchinha. Passada a turbulenta adolescência, tendemos a construir relações
estáveis. Nelas, os abraços cheios de sono e intimidade são mais frequentes que
os beijos apaixonados. Há uma troca que parece refletir as nossas necessidades
profundas. Deixamos de lado a paixão incandescente pelo afeto profundo.
Trocamos tesão por amor. Claro, essa não é uma solução inteiramente
satisfatória. Nem definitiva. Mas parece ser aquela que de forma mais frequente
atende a nossa insondável, dolorosa e contraditória humanidade – a mesma que
nos acorda no meio da noite, inquietos, e nos faz procurar, no escuro, o calor
e o conforto do corpo do outro.
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