Até hoje alimento a desconfiança de que o passarinho
era o Felipe Pinheiro se despedindo.
EM 1897, uma expedição científica ao Ártico levou uma família de inuítes para ser estudada no Museu de História Natural de Nova York.
Morreram todos, vítimas das viroses dos brancos, com exceção de um menino de nome Minik e de um adulto que retornou para a Groenlândia. O museu destinou uma de suas vitrines para a exibição das ossadas.
Minik tentou reaver o direito sobre os restos mortais do pai e dos parentes por toda a vida, até sucumbir à influenza, em 1918. Na sua crença, a alma dos insepultos está condenada a vagar pela eternidade caso não repouse no chão.
O tormentoso além só teve fim graças ao canadense Kenn Harper, que, em 1993, realizou o funeral do clã em solo pátrio. Nesse mesmo ano, morreu Felipe Pinheiro, ator, escritor e primeiro óbito chocante da minha juventude.
Longe do Brasil, não pude enterrar meu amigo.
No dia em que voltei, abri a porta de casa e recebi uma visita inquietante. Um passarinho saiu da floresta e pousou perto de mim. Não contente, subiu pelo braço e se instalou no meu ombro.
Passamos incontáveis horas juntos. Perambulamos pelos cômodos. Desfiz as malas e adormeci com o curió ainda ao redor. Quando acordei, ele não estava mais lá. Ele nunca mais esteve lá.
Não sou espírita. Creio que virarei adubo de árvore ou árvore, ou quem comer da tal árvore; mas até hoje alimento a desconfiança de que o pequeno ser emplumado era o Felipe se despedindo de mim. Delírio confesso. Fruto, talvez, do fato de eu não tê-lo sepultado.
Fiz uma novela com Jardel Filho em 1981: "Brilhante". Por razões óbvias, nunca fomos íntimos, mas compareci ao enterro de Jardel.
Nosso contato mais próximo se deu enquanto esperávamos para entrar em cena, atrás da porta do cenário da mansão. Metido em um smoking 007, o mítico revolucionário de "Terra em Transe" virou seus faróis azuis na minha direção e me perguntou o que eu achava dele no papel do milionário Bruno Newman.
Eu tinha 16 anos e não me lembro de ter respondido. Me recordo apenas da surpresa petrificante de ver o amor de Cacilda Becker em "Floradas na Serra", atrás de uma tapadeira, me pedindo uma opinião. Jardel morreria no folhetim seguinte: "Sol de Verão", em pleno Carnaval de 1983.
O velório ocorreu no foyer do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, ao som do Baile do Bola Preta, que comia solto do outro lado da rua.
"Quem não chora não mama
Segura, meu bem
A chupeta
Lugar quente é na cama
Ou então
No Bola Preta"
Uma longa fila de homenagens se dirigia ao caixão. O morto, postado em frente à escadaria principal, estava rodeado por uma procissão de fãs, jornalistas e notáveis, além de pierrôs, colombinas,
travestis e bêbados da folia da Cinelândia. Glauber Rocha, que morrera estapafurdiamente dois anos antes, teria feito um filme e tanto daquela noite.
Estar presente no ritual das exéquias de Jardel me ligou definitivamente a ele, enquanto a ausência no de Felipe me fez encarná-lo em animais silvestres.
Sabem tudo esses esquimós.
Dedico essas linhas a Leon Cakoff, a quem não pude dar adeus.