Um dos sinais de recuperação econômica do Rio
é a paulistanização do trânsito.
Nos tempos de bancarrota, ia-se daqui a ali como na mais desimpedida das cidades do interior. Na juventude, eu amava dirigir até a Barra da Tijuca a bordo de um Fiat 147. A Avenida das Américas era uma via expressa e o sol se punha diante dos olhos, sem o perfil ostensivo dos arranha-céus. Mantive o hábito até o dia em que o trajeto de ida e volta passou a custar três horas.
Hoje, trabalho em Curicica. Curicica é para lá da Barra. Bem para lá. Fica muito depois do autódromo, do Riocentro. Quando se avista a Cidade da Música, ainda falta cumprir um terço da viagem.
No ano passado, no começo do seriado Tapas & Beijos, me agradava repetir a experiência dos áureos tempos, comparando o horizonte de prédios com o areal da memória. Mas o ritmo de gravação aumentou, os meses se sucederam e o cansaço venceu. Em agosto, desisti de dirigir sozinha depois de dez horas de trampo. Apelei para um motorista.
Estranhei a falta de privacidade e custei a me livrar da ansiedade de querer chegar, a mesma que me consumira por todo o primeiro semestre. Continuei calculando o tempo perdido em cada sinal fechado, numa tentativa estúpida de controlar o incontrolável.
Para me curar do mal nefasto, aceitei que não chegaria em quarenta minutos ao trabalho, como na época da Vani. Se tudo der certo, é uma hora para ir e outra para voltar; e, se o serviço terminar às 6, peça de joelhos para gravar mais umas cenas, porque tanto faz sair de Curicica em pleno rush, e levar duas horas e meia no carro, ou sair às 8, e levar uma.
E eu me ocupei em decorar, escrever, telefonar, ler o jornal… entregando a Deus cumprir, ou não, o horário marcado. Os novos costumes tomaram o lugar da antiga angústia a ponto de, faz poucos dias, eu me surpreender sentindo um prazer imenso de encarar mais uma jornada de congestionamento na paz móvel do meu bólido.
Um bom transporte público deveria promover o mesmo. As megalópoles obrigam o cidadão a gastar a vida em deslocamentos. A indústria automotora, que norteia a economia desde Juscelino, se transformou em tragédia nas cidades que, como as nossas, cresceram desordenadamente.
O trânsito do Rio vai parar. Espremido entre a montanha e o mar, não há saídas de circulação. Sou testemunha das obras de ampliação da rede de asfalto, acompanho os andamentos e as retenções da Transcarioca, as novas estações de ônibus, mas rezo mesmo é para que o Brasil recupere e expanda sua via férrea, dentro e fora dos centros urbanos.
Ler é um dos grandes hábitos nos metrôs humanamente ocupados dos países alfabetizados. Não seria um sonho de civilidade se os brasileiros gastassem suas longas horas de transporte devidamente sentados e com um livro na mão? Ou revista, ou gibi que seja.
Usar o carro para me transportar sozinha com o auxílio luxuoso de um personal Ayrton Senna não é solução. Os engarrafamentos estão como estão porque pessoas como eu gostam do isolamento de seu foguete sobre rodas.
Vi um documentário da BBC na TV que estudava a mente do cidadão que pilota seu 1.0 nas ruas. A sensação de túnel, que as imagens em alta velocidade provocam, causaria uma reação hipnótica de relaxamento, controle, poder, proteção e liberdade. Exatamente o que eu sentia no volante do meu Fiat 147.
Em muitos lugares, o antídoto das autoridades para barrar hedonistas com o meu perfil é cobrar preços aviltantes por uma vaga de estacionamento e incentivar a carona. As Diamond Lines, nos Estados Unidos, só podem ser usadas por veículos com mais de dois passageiros.
Fica aí a sugestão. Vai ter gente passeando com boneca inflável no banco do passageiro para poder continuar a sós sem atrasar o passo.
A visão de Deus a 300 quilômetros por hora atravanca o altruísmo social. O carrão só vai ficar na garagem no dia em que a economia depender menos da indústria automobilística e o transporte público se transformar na escolha mais simples, rápida e agradável para chegar a qualquer lugar.
Vai demorar.