Um
presidente americano disse que
o negócio dos Estados Unidos era
fazer negócio.
Hoje, dir-se-ia que é lutar a todo custo e risco
contra o terrorismo
Eles
ainda eram cinco quando a tia solteirona e magra viu a fumaça saindo
da cabana que os sobrinhos tinham construído no terreno baldio ao
lado da casa onde moravam. Viviam na Belo Horizonte dos anos 40 e
mesmo um bairro nobre da cidade, em torno do Minas Tênis Clube,
muitos lotes cheios de "mato", esperavam as construções
que hoje sombreiam a cidade. A turma de doze meninos que os cinco
irmãos naturalmente atraiam havia construído as paredes de restos
de caixote e caixas de papelão, o telhado de folhas de bananeira e
de galhos arrancados dos arbustos.
Um
muro servia como fundo e arrimo da tal cabana que saltava aos olhos
no meio daquele lote vazio. E foi essa construção torta que Tia
Amália viu pegando fogo — afinal onde há fumaça, há fogo! —
mas que aos olhos dos meninos era uma confortável (porque possível)
sala de fumar. Com cigarros na mão e tragadas elegantes, eles
brincavam de ser "homem" e, entre os adultos, figurar os
haveres da paternidade que um dia ia sair dos seus sonhos e tornar-se
tão dolorosamente real para alguns deles.
"Pois
é, dizia Romero, você pode comprar aquele meu terreno na
Pampulha..." Ao que Fernando respondia, pondo fumaça pela boca
e sério como um corretor, "Vou considerar!". Enquanto
Ricardo e Renato ficavam enjoados com o tabaco e Roberto, o cabeça,
o mais velho e o sempre responsável por tudo, preocupava-se com a
fumaceira e em pagar ao Lelinho — o único menino com coragem de ir
comprar um maço de cigarros Beverly Extra, em nome do pai.
Quando
a tia arrombou a porta da cabana e, escoltada por Dedé, a
cozinheira, descobriu o que chamou de "vasta patifaria",
nós todos voltamos à meninice e sentimos como o mundo da meninice é
um universo toldado pelos olhos do mundo, um mundo de adultos. A
cabana não estava em chamas. Ela apenas produzia a fumaça que
denunciava o nosso "fumar escondido" como fazíamos as
escondidas um monte de outras coisas que iam nos tornando o que
seriamos como adultos.
O
cronista de Cuzco, Garcilaso de la Vega, conta no seu livro,
"Comentários Reais dos Incas", publicado na Espanha em
1606, um “conto gracioso”.
Um
conquistador chamado Solar, residente em Los Reys (Lima), tinha uma
propriedade em Pachacamac. O capataz desta propriedade enviou ao
patrão, por meio de dois índios, dez melões — frutos das
primeiras sementes plantadas no Peru — e uma carta. Quando entregou
a encomenda aos índios, ele os advertiu que não comessem nenhum
melão porque, se o fizessem, a carta descobriria e os denunciaria.
No meio da viajem, um dos índios sentiu o aroma sedutor dos melões.
quis saber o seu gosto o teve o desejo de provar a fruta do amo. Seu
companheiro, temeroso, disse que não deveriam fazer isso porque a
carta iria contar. O cabeça resolveu o problema colocando a carta
atrás de uma mureta — pois assim ela não poderia ver o que eles
estavam dispostos a fazer e, sem vê-los, ela não denunciaria o que
estavam para fazer às escondidas.
A
estas alturas, devo lembrar que esses índios do Peru não conheciam
a imensa tecnologia que chegou com a escrita, a qual inventou os
mandamentos, as leis, os contra-mandamentos, os embargos, as
exegeses, as receitas, os jornais, a literatura, a criptografia e a
Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos.
Eles
imaginavam que as cartas que os espanhóis escreviam uns aos outros
eram mensageiros ou espiãs capazes de revelar o que encontravam pelo
caminho. As cartas eram concebidas como seres animados.
Comido
o primeiro melão, os índios decidiram que era conveniente
emparelhar as cargas. E assim, para ocultar o delito, comeram — com
gosto — outro melão. Chegados a Lima, apresentaram oito melões ao
capataz. Este, logo depois de ler a carta, os confrontou: "A
carta fala em dez! Vocês comeram dois melões na viajem. Vão levar
uma sova por essa malandrice!". Depois de muito apanhar, os
pobres mensageiros sentaram-se tristes na beira do caminho e um deles
disse: "Viu irmão? Carta canta!" Ambos ficaram muitos
impressionados com o poder dos Conquistadores, os quais possuam essas
"cartas" falantes, capazes de descobrir o escondido.
Matamos
Deus e somos escravos da técnica. Passei o sábado tentando fazer
funcionar uma impressora e, mesmo com uma ajuda decidida e dedicada,
não consegui. Nem sempre o que está no papel e nos planos do
usuário, concretiza-se na sua relação com a coisa adquirida sem a
figura do intermediário. Um presidente americano disse que o negócio
dos Estados Unidos era fazer negócio. Hoje, dir-se-ia que é lutar a
todo custo e risco contra o terrorismo — coisa complexa porque a
guerra se faz entre países.
Como
disse o escritor Philip Roth, com o gosto pelo desvelar que passa
longe de nós, em 1998, quando do escândalo Lewinski-Clinton, o
terrorismo substituiu o comunismo como a prevalecente ameaça a
segurança nacional somente para ser sucedido por um escândalo
erótico. A vida em toda a sua desavergonhada impureza, confunde mais
uma vez a América, finaliza Roth.
Como
meninos pegos fumando e peruanos ágrafos e loucos por melões, mas
denunciados por uma carta, a América da liberdade e do equilíbrio
entre o íntimo e o coletivo, entre o se deve aos aliados e a si
mesma, é pega espionando o mundo. A tocha da Estátua da Liberdade
foi substituída por um iphone.