O que dirá um marido diante da pergunta da mulher:
"Você acha que eu estou gorda?"
NAS FILMAGENS de "Marathon man", Sir Laurence Olivier observou que seu colega Dustin Hoffman se preparava para uma tomada. Todo suado, o semblante contraído, a cabeça baixa, Hoffman parecia presa de grande sofrimento. Sir Laurence perguntou, intrigado:
"- O que você está fazendo?"
"- Estou entrando no personagem (Dustin era adepto do "Método" do Actor's Studio)".
"- Why don't you try just acting?" (Por que você não tenta representar, apenas?), disse Olivier.
Lembrei-me disto ao dar boas risadas quando vi o significado original de hipocrisia: "resposta de um oráculo; desempenho teatral; encenação (em + cena + ação)".
Lembrei-me também do clichê de Fernando Pessoa ("O poeta é um fingidor/ finge tão completamente/ que chega a fingir que é dor/ a dor que deveras sente").
Por que sei que a hipocrisia é nosso lubrificante social de todos os dias? O que dirá um marido diante da pergunta "Você acha que eu estou gorda?" Ou uma mulher, solicitada a comentar sobre o bebê pavoroso da vizinha?
Soubemos da morte de Getúlio quando nos vieram dizer que as aulas estavam canceladas. Exultei pelo feriado extemporâneo. Mas tive minha primeira lição de hipocrisia, quando minha prima veio me exortar para uma prece pela alma do suicida. "Mas, por que, se a gente não gostava dele? (a família era lacerdista)". "Ah, mas quando a pessoa morre, devemos sentir pena dela", disse a prima. Foi a primeira, mas não a última.
Curiosa coisa é a mentira, que não se confunde com o verbo mentir. Pois pode-se dizer uma mentira sem mentir, se você acredita nela (era o que Dustin tentava fazer). E pode-se mentir dizendo a verdade.
Tancredo encontra Alckmin na estação de Juiz de Fora.
"- Para onde vais, Zé?"
"- Para Barbacena, Tancredo."
Nosso quase presidente pensa: "Mentiroso sem-vergonha, ele diz isso para que eu ache que ele vai para Belo Horizonte, mas o danado vai para Barbacena mesmo".
Coisas de mineiro, dizia meu pai.
Mas então, por que do barulho por um hipócrita desmascarado? Porque há a hipocrisia danosa, nada a ver com a do nosso dia a dia. Como a propaganda enganosa, dissemina o descrédito e o cinismo, "não se pode acreditar em ninguém". O comércio pela internet, por exemplo, depende de maneira crucial que se acredite nele.
O "conto do vigário" pode ter saído de moda no varejo, mas prospera no atacado. Foi até promovido! Hoje se chama "o conto do bispo". Era assim porque o vigário, ou o bispo, supunha-se confiável. O dano maior vem de concordar com o dito e se horrorizar com os feitos de quem disse. Ficamos com cara de patetas. Por isso Floriano Peixoto aconselhava: "Confiar, mas desconfiando".
A inteligência se desenvolveu na espécie através da desconfiança. Nossos ancestrais pensavam, "Ele está fazendo as mesmas coisas que eu faço quando minto, logo...", e este raciocínio lhes salvava a vida, muitas vezes. Alguém bate no peito a dizer "Sou honesto!" e o falso moralismo mostra o rabo.
Millôr disse de um prefeito probo que levou o Rio à falência: "Saturnino, o homem que desmoralizou a honradez".