Visto de entrada à Coreia do Norte
concedido a Suki Kim
Em 2011, Suki Kim, jornalista que nasceu e cresceu na Coreia do Sul e é cidadã americana, conseguiu um trabalho para dar aulas de inglês em uma universidade privada de Pyongyang, na qual estudam filhos homens da elite norte-coreana, "os futuros líderes do país".
Kim passou seis meses vivendo no campus da universidade tomando notas para convertê-las no livro 'Without You, There Is No Us: My Time with the Sons of North Korea's Elite' (Sem você, não há nós: meu tempo com os filhos da elite norte-coreana), publicado em 2015.
Suki Kim relatou à BBC Mundo como foi sua experiência, algo que poucos estrangeiros puderam experimentar no hermético país que nos últimos 70 anos esteve isolado do resto do mundo. É um lugar, como ela diz, onde o medo é constante, todos vivem se vigiando e onde o controle do governo "é o pior que se pode imaginar". Veja abaixo o seu depoimento.
Meu interesse na Coreia do Norte vem de uma combinação de duas razões. Como jornalista, tinha uma frustração por não saber a verdade sobre o que ocorre neste lugar, o que é uma enorme tragédia. E minha família foi separada pela guerra das Coreias em 1950, o que trouxe a razão pessoal.
Essa guerra e a posterior divisão da península separaram milhões de coreanos. Meu tio, irmão da minha mãe, ficou no norte, e minha avó nunca voltou a vê-lo. O mesmo ocorreu com os primos do meu pai.
De Pyongyang a Seul (capital de Coreia do Sul), são necessárias apenas duas horas de carro. Mas quando traçou-se a linha que dividiu a península, o Paralelo 38, em 1953, as pessoas que ficaram no norte nunca voltaram a ver seus familiares.
Eu cresci neste clima na Coreia do Sul, onde minha avó literalmente morreu de aflição esperando o filho que acidentalmente ficou do outro lado e não pôde nunca regressar.
A dor e ansiedade causados por esta situação se converteram em uma obsessão. Como podemos entender esta tragédia?
Foi assim que comecei a buscar uma oportunidade para poder entrar e viver na Coreia do Norte.
Durante uma década estive fazendo uma pesquisa sobre o país. Falei com quase cem desertores em países vizinhos: China, Mongólia, Tailândia e Laos.
Nesta época, entrei por períodos curtos na Coreia do Norte, mas o que buscava era a possibilidade de poder viver ali, incógnita.
Em 2011, Suki Kim conseguiu um emprego na recém-inaugurada Universidade para a Ciência e Tecnologia de Pyongyang (PUST), a única universidade privada da Coreia do Norte, frequentada por filhos de dirigentes norte-coreanos. A PUST foi fundada por grupos evangélicos de vários países.
Seus funcionários são principalmente professores americanos que estão ali como voluntários, financiados por suas igrejas. Kim foi contratada para dar aulas de inglês por um período de seis meses.
A Coreia do Norte está cheia de paradoxos. E esta universidade é uma delas.
A religião aqui não é permitida, e o proselitismo é um crime muito sério, castigado com a morte. O único que se venera no país é o Grande Líder.
Mas a comunidade evangélica fez um acordo com a Coreia do Norte: ela bancaria a universidade e não faria proselitismo - apesar de ser óbvio que este era o objetivo de longo prazo.
Assim, grupos evangélicos fundamentalistas estão financiando a educação dos futuros líderes do país em troca de um potencial propósito missionário de longo prazo.
O governo tem que aprovar tudo o que ocorre na universidade. Eles selecionam os estudantes, que são principalmente filhos dos funcionários do partido dirigente. Na Coreia do Norte, o governo decide tudo sobre o indivíduo: a carreira que seguirá, a escola onde estudará, as atividades que fará.
Quando estive ali, havia 270 estudantes, todos homens que viviam no campus. Eu ensinava inglês para duas classes, com cerca de 50 alunos de 19 e 20 anos cada.
A universidade é vigiada por militares e ninguém tem permissão para sair. O governo define as escoltas que vivem com os professores no campus e seu trabalho é monitorá-los 24 horas por dia. Eu tive uma escolta me vigiando dia e noite, literalmente, já que dormia no quarto abaixo do meu.
Tudo o que fazíamos e ensinávamos devia ser aprovado, monitorado e gravado.
Vivi o tempo todo aterrorizada. Se não tivesse escrevendo o livro, minha situação teria sido diferente, mas estava tomando notas em segredo e sabia que nunca ninguém tinha tentado fazer isto no país.
Mantive minhas notas em memórias de USB e sempre as levava comigo. Todos os dias apagava tudo do meu computador e não deixava nenhum rastro do meu trabalho.
A possibilidade de que a minha escolta descobrisse essas notas me dava arrepios. No meu quarto, havia microfones ocultos; e todas as aulas que eu dava eram gravadas.
É um sistema de medo constante e vivi aterrorizada pensando que poderia morrer ali.
O que pensava de meus alunos? É uma pergunta bastante complexa. Para o meu livro, estava tratando de entender o que pensavam e sentiam, mas vivendo em um sistema de constante controle e vigilância ninguém sabe realmente o que as pessoas pensam ou sentem.
Os estudantes também estão sob um sistema de supervisão constante. Nunca estavam sozinhos. Eles se vigiavam e me vigiavam e informavam sobre mim. Costumavam ter uma reunião semanal na qual informavam sobre os outros estudantes e sobre os professores.
Eles são tratados como soldados. Fazem exercícios em grupo, correm em grupo, cada hora saem para marchar em grupo para honrar o Grande Líder, e constantemente são doutrinados sobre a grandeza do Grande Líder e o ódio aos Estados Unidos.
Eu cheguei a sentir um grande afeto por meus estudantes, que pareciam muito mais inocentes que outros jovens de 20 anos em outras partes do mundo.
Eram adoráveis, enérgicos e curiosos. Os típicos estudantes desta idade que fazem piadas o tempo todo, que falam de garotas o tempo todo. Esse aspecto humano é um enorme contraste com o estilo de vida que lhes é imposto e ao qual estão continuamente expostos.
Foi sob esta constante vigilância que entendi a insuportável situação na qual vivem, o medo de estar sempre vigiando e denunciando os demais, a impossibilidade de ir a qualquer lugar ou com qualquer pessoa, e a forma como se restringe seu mundo, sua imaginação.
Para o resto do mundo, a Coreia do Norte é um enigma. Mas o que pensam os norte-coreanos sobre o que está além de suas fronteiras?
Suki Kim assegura que estes jovens não têm permissão de expressar nenhuma curiosidade sobre o mundo exterior. E isto, diz a escritora, é um tipo de abuso psicológico que condiciona cidadãos a aceitar o que lhes rodeia sem questionamentos.
Nesta época, em 2011, os estudantes nunca tinham ouvido falar de internet, e eu era proibida de falar sobre isto. Eu tinha ordens estritas de não revelar nada sobre o mundo exterior e eles não tinham nenhuma informação sobre o que ocorria fora de seus país, não conheciam o Taj Mahal, nem a Torre Eiffel, e tampouco sabiam quem era Michael Jackson.
A televisão na Coreia do Norte tem apenas um canal com programas sobre o Grande Líder. Também são transmitidos programas da China ou da Rússia, todos baseados nos "ideais socialistas".
Há apenas um jornal e os artigos publicados também estão vinculados ao Grande Líder. O mesmo ocorre com os livros que leem e com todas as outras formas de educação e entretenimento.
'Cheguei a sentir um grande afeto pelos estudantes', disse Suki Kim.
Toda sua rotina e seu entretenimento funcionam para honrar o regime e a filosofia do sistema. Na universidade, ocasionalmente jogavam futebol e basquete.
É preciso lembrar que estes são os jovens das elites, mas que o resto da população vive sob o mesmo controle.
Houve ocasiões, aos domingos, quando nos permitiram sair em grupo e com escoltas em excursões que tinham sido previamente aprovadas, entre elas para visitar e colocar flores em edificações do Grande Líder.
Às vezes, saíamos de Pyongyang para visitar as Grandes Montanhas ou alguma fazenda. Fora da capital não se veem muitas coisas. As estradas estão vazias, não há carros nas ruas.
Pude ver que as pessoas fora a capital eram menores. As pessoas com quem tínhamos permissão de interagir, como os estudantes, pareciam com a gente. Mas as pessoas que se veem nas margens de estradas são marcadamente menores e parecem malnutridas. Nunca nos permitiram falar com ninguém nas ruas.
Os lugares para onde nos levavam pareciam cenários de filme e nunca havia pessoas nesses lugares. Só víamos os outros membros do grupo e, por toda parte, todos os lugares estavam cobertos com milhares de slogans do Grande Líder.
Esta é a realidade que te mostram. O controle no país é algo muito forte. Controlam cada aspecto da vida e tudo está relacionado ao Grande Líder.
Depois de toda a investigação que tinha feito sobre a Coreia do Norte, nunca tinha imaginado que pudesse existir um controle tão grande. A realidade é pior do que se pode imaginar.
Kim Suki é autora do romance "The Interpreter"(O Intérprete) e escreve regularmente para o New York Times, BBC, Washington Post, Harper's e New Republic.