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NATAL, A ESTÓRIA DO MENININHO - Rubem Alves

Minhas netas: o Natal está chegando. Todo mundo fica agitado, é preciso comprar presentes no cartão de crédito, fazer dívidas a serem pagas no outro ano, preparar comilanças... Mas, afinal de contas, por que tanto agito? Eu acho que a maioria se agita sem saber porque. E, se soubessem, não se agitariam... Pois eu vou dizer o que penso do por que do Natal. O Natal é o dia em que se para tudo a fim de se contar e a fim de se ouvir uma estória, a mais bela e a mais simples jamais contada. Todo esse agito por causa de uma estória? É. 

Vocês, que gostam do Harry Potter, fiquem sabendo: a estória do Natal é uma estória do mundo dos mágicos, dos bruxos, das fadas, das varinhas de condão, dos encantamentos. As estórias têm poderes mágicos. Vocês já notaram que, quando a gente ouve uma estória que nos comove, ela entra dentro da gente, faz a gente rir, faz a gente chorar, faz a gente amar, faz a gente ficar com raiva? As estórias dos mundos dos mágicos saltam das páginas dos livros onde estão escritas, entram dentro da gente e se alojam no coração. 


Quando isso acontece a estória fica viva, toma conta do nosso corpo e da nossa alma, e nós passamos a ser parte dela. Pois a estória do Natal faz isso com a gente. Quando vai chegando o Natal eu fico com saudade das músicas antigas de Natal (tem de ser das antigas; as modernas não servem) e começo a folhear meus livros de arte, onde estão as pinturas do presépio. É muito simples: um menininho que nasceu em meio aos bois, vacas, ovelhas, cavalos, jumentos... Era menininho pobre. 


Mas diz a estória que quando ele nasceu aconteceu uma mágica com o mundo: tudo ficou diferente: as árvores se cobriram de vaga-lumes, as estrelas brilharam com um brilho mais forte, e até uns reis deixaram os seus palácios e foram ver o nenezinho. A visão do menininho os transformou: eles largaram suas coroas, jóias e mantos de veludo junto com os bichos, na estrebaria. Quem vê o menininho fica curado de perturbação. Perturbados são os adultos que, ao falar sobre Deus, imaginam um ser muito grande, muito poderoso, muito terrível, ameaçador, sempre a vigiar o que fazemos para castigar. 


Pois o Natal diz que isso é mentira. Porque Deus é uma criancinha. Ele está muito mais próximo de vocês do que dos adultos. E foi essa mesma criancinha que, depois de crescida, disse que para estar com Deus bastava voltar a ser criança. Se os adultos, antes de comprar presentes e preparar ceias, se lembrassem da estória, eles ficariam curados da sua doidice. Na noite do Natal que se aproxima, antes de abrir os presentes, antes de começar a comedoria, peça ao seu pai ou à sua mãe: “Por favor, conte a estória do menininho...“ E, se eles não souberem contar, peça que eles leiam esse poema sobre o Menino Jesus escrito por um poeta que queria ser menino, por nome de Alberto Caeiro.

Num meio-dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.

Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.

Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.

Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.

A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as cousas.
Aponta-me todas as cousas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.

Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.

E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.

A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver.
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.

A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.

Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro.
Mas vivemos juntos e dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.

Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta.
E como se cada pedra
Fosse todo um universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.

Depois eu conto-lhe histórias das cousas só dos homens
E ele sorri, porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos-mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do sol
A variar os montes e os vales.
E a fazer doer aos olhos os muros caiados.

Depois ele adormece e eu deito-o.
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.

Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.

Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.

Esta é a história do meu Menino Jesus.
Por que razão que se perceba
Não há de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?
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AO BOM VELHINHO - FERNANDA YOUNG

Querido Papai Noel:

Tenho sido uma boa menina e me comportado bem. Mentira, tenho sido uma boa menina e me comportado mal. Não faço pipi na cama, mas faço má-criação. Cumpro com os meus deveres, mas falo um monte de nomes feios. É que ando um pouco de saco cheio de certas coisas.

Políticos roubando sem parar e as pessoas com medo de assalto. Prefeituras me multando pelas ruas e as cidades entregues as baratas.

Crianças fazendo malabarismos pelas esquinas e todo mundo preocupadíssimo com o namoro dos famosos. Mulheres aumentando cada vez mais seus peitos e os homens assistindo cada vez mais futebol. O mundo piorando ano após ano e todos soltando foguetes no réveillon.

Gente falando mal do que eu faço e não fazendo porcaria nenhuma. Bom, a lista seria grande. Mas não foi para me queixar que resolvi escrever para você.

Queria, por causa dessas chateações, fazer alguns pedidos. Todos de coisas que não existem, vou logo adiantando. Mas você também não existe e eu dei um jeito de te mandar esta carta, certo? Eis, então, o que desejo:

UMA COLA DE BARRIGA . Adoraria que minha barriga grudasse de volta. Tive filhos e, depois, já tentei de tudo, mas não há milhares de abdominais que resolvam.

UMA PIZZA ANTIDEPRESSIVA. Adoro pizza, mas detesto a culpa que se segue. Poderiam descobrir algum ingrediente totalmente natural, que pudesse também ser usado para fazer chicletes de auto-estima.

UM APAGADOR DE GAFE. Poderia vir em spray. Após alguma gafe cometida, a pessoa daria uma borrifada no ar e os últimos 15 segundos deixariam de ter existido.

UMA ESCOVA PERMANENTE, PERMANENTE MESMO. Que tipo de “permanência” é essa, que não resiste a umas gotinhas de chuva? Eu busco a eternidade – o furacão Katrina poderia passar pela minha cabeça que a escova continuaria intacta.

UM GENÉRICO DO SIMANCOL. Ninguém mais ia continuar precisando de uma dose de simancol, pois bastaria passar na farmácia da esquina.

UM ARMÁRIO AUTO-ARRUMANTE. Aqui em casa, já temos um forno autolimpante, um freezer autodescongelante e várias figurinhas autocolantes. Só falta alguém resolver a questão dos armários.

UM DERRUBADOR DE SINAL. Quando alguém viesse falar ao celular perto de você, o sinal automaticamente cairia. E, quando alguém ligasse para um celular próximo a você, escutaria a seguinte mensagem: “O aparelho chamado encontra-se na região de uma pessoa sem paciência, ligue depois”.

UM LOCALIZADOR DE ROUBADAS. Funcionaria como um localizador GPS comum, com uma diferença: sempre que você estivesse indo em direção a uma roubada, o aparelho indicaria o caminho de volta para casa.

É isso, Papai Noel. Apenas isso.
Botarei o meu sapatinho na janela do quintal acreditando em você.
Feliz Natal a todos.
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MAMÃE NOEL - Martha Medeiros 🎅🏻 FELIZ NATAL!! 🎅🏻

Sabe por que Papai Noel não existe? Porque é homem. Dá para acreditar que um homem vai se preocupar em escolher o presente de cada pessoa da família, ele que nem compra as próprias meias? Que vai carregar nas costas um saco pesadíssimo, ele que reclama até para colocar o lixo no corredor? Que toparia usar vermelho dos pés à cabeça, ele que só abandonou o marrom depois que conheceu o azul-marinho? Que andaria num trenó puxado por renas, sem ar-condicionado, direção hidráulica e air-bag? Que pagaria o mico de descer por uma chaminé para receber em troca o sorriso das criancinhas? Ele não faria isso nem pelo sorriso da Luana Piovani! Mamãe Noel, sim, existe.


Quem é a melhor amiga do Molocoton, quem sabe a diferença entre a Mulan e a Esmeralda, quem conhece o nome de todas as Chiquititas, quem merecia ser sócia-majoritária da Superfestas? Não é o bom velhinho.

Quem coloca guirlandas nas portas, velas perfumadas nos castiçais, arranjos e flores vermelhas pela casa? Quem monta a árvore de Natal, harmonizando bolas, anjos, fitas e luzinhas, e deixando tudo combinando com o sofá e os tapetes? E quem desmonta essa parafernália toda no dia 6 de janeiro?

Papai Noel ainda está de ressaca no Dia de Reis. Quem enche a geladeira de cerveja, coca-cola e champanhe? Quem providencia o peru, o arroz à grega, o sarrabulho, as castanhas, o musse de atum, as lentilhas, os guardanapinhos decorados, os cálices lavadinhos, a toalha bem passada e ainda lembra de deixar algum disco meloso à mão?

Quem lembra de dar uma lembrancinha para o zelador, o porteiro, o carteiro, o entregador de jornal, o cabeleireiro, a diarista? Quem compra o presente do amigo-secreto do escritório do Papai Noel? Deveria ser o próprio, tão magnânimo, mas ele não tem tempo para essas coisas. Anda muito requisitado como garoto-propaganda.

Enquanto Papai Noel distribui beijos e pirulitos, bem acomodado em seu trono no shopping, quem entra em todas as lojas, pesquisa todos os preços, carrega sacolas, confere listas, lembra da sogra, do sogro, dos cunhados, dos irmãos, entra no cheque especial, deixa o carro no sol e chega em casa sofrendo porque comprou os mesmos presentes do ano passado?

Por trás do protagonista desse megaevento chamado Natal existe alguém em quem todos deveriam acreditar mais.
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O QUE SERIA DE NÓS SEM AS COISAS QUE NÃO EXISTEM? - Rosiska Darcy Oliveira

Na noite de Natal há uma pulsação acelerada no coração do mundo. È um tempo de exacerbação de sentimentos, quando presenças e ausências ganham maior intensidade.

Há quem não goste de Natal, torça para que passe depressa esse frenesi do consumo, com desempregados patéticos sentados entre eletrodomésticos, equilibrando seus mal colados bigodes de algodão, mais assustando do que encantando as crianças. Há muita dor nesse dia mesmo se a televisão afirma que o Natal é alegria, propondo o mundo surreal das compras em megashoppings superlotados. Essa histeria comprovaria a perversão de uma festa religiosa.

São verdades que não são toda a verdade. Dando o laço nos embrulhos dos presentes não me vejo estimulando o consumo e sim criando laços com que amarro a esperança de manter próximos e unidos os que chamam de meus. Não fosse a vida destruidora de laços e criadora de nós... Ainda assim, é possível preservar nossos gestos em um espaço interior, excêntrico às análises econômicas e que elas não tem o poder de desencantar.

O chamado sistema – o que quer que isso queira dizer em sua imprecisão conceitual – não expropria a vida do sentido que lhe damos a exemplo do valor das memórias do Papai Noel da infância, indeléveis, revividas nos que hoje ainda são crianças e acreditam em um ser que não existe, mas lhes é benfazejo. Essas também entram no pacote dos críticos de Natal. Uma tolice, dizem, fazer acreditar no que não existe.

O que seria de nós em as coisas que não existem? O mundo seria de uma banalidade insuportável e, nós, prisioneiros dos cinco sentidos. Não aconteceria, por exemplo, a literatura, essa arte de dar vida a criaturas imaginárias que, no entanto, nos acompanham vida afora. Se às crianças basta crer para ver, aos adultos também.

Nem tudo se explica pelo volume de negócios e seus negociantes. A economia não é a senha que descodifica o mundo. Há outro modo de viver o Natal, como um desejo de vínculos que resistem a um mundo de relações esgarçadas, de amores líquidos, de individualismo delirante, do cada um por si. A força e o mistério da noite de Natal é trazer à tona o ancestral desejo de pertencimento.

Há um potencial regenerador, um desejo de comunidade religiosa ou familiar, ou simplesmente, de união a algum ente querido. No Natal dói mais a solidão e disso bem sabem os que conheceram o exílio e as noites gélidas em terra estrangeira, com saudade da falsa neve e algodão. Doem mais as ilusões perdidas, os que já não estão nas fotos e perambulam nos corredores da memória, presentes, mas invisíveis, fantasmas da permanência que a vida promete e não cumpre.

Em todo o mundo multidões se deslocam para passar essa noite com “os seus”, o que pode ser – e é- o infernos dos aeroportos e rodoviárias, o pesadelo dos engarrafamentos, mas é também o esforço de riscar, no espaço, um traço de união entra os que vivem separados. A dificuldade na noite de Natal é multiplicar-se entre os entres queridos, espalhados em casamentos rompidos e recompostos ou em cidades que a globalização e a imigração fizeram conviver sem que, por isso, sejam menos distantes.

Por que Bing Crosby, morto há décadas, cantando “White Christmas”, ainda faz chorar mesmo os politicamente corretos? Talvez porque, no fundo de si mesmo, ninguém tenha renunciado a uma noite feliz.

A noite de Natal é um tempo suspenso, um desafio à temporalidade hipermoderna. Um sursis em um mundo predatório que trata o tempo como tratou os seus recursos naturais, exigindo de todos os malabarismos da quase ubiqüidade. Dia da dia lutasse pelo que se acredita será, no futuro, um lugar ao sol enquanto, no presente, o sol é subtraído dos escritórios sem janelas. 

No Natal cada um reserva para si um tempo inegociável – nessa noite tempo não é dinheiro – e se recolhe a um espaço privado na contramão do cotidiano frenético que, impiedosos, devora os momentos de intimidade.

Há uma inocência nessa noite REM que se dá presente, come-se bem, misturam-se gerações e, imperceptivelmente, vive em cada um de nós um Deus pobre e nu, mas acalentado, a quem reis magos trazem ouro, incenso e mirra. Aos amigos nos trazem um vinho, um livro, um brinquedo. Esse Deus, cedo ou tarde encontrará seu Judas e morrerá na cruz.

Mas terá tido sua noite feliz, sua noite de criança. Seu Natal.
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AFLIÇÕES DA PASSAGEM DE ANO - Eduardo Mascarenhas

- A passagem de ano é um balanço da vida
- Há uma mistura de esperança e apreensão
- O relacionamento com o mundo é posto em questão

Muitas pessoas suspiram aliviadas quando terminam as chamadas festas de fim de ano. Realmente, o fato de o Natal cair uma semana antes do dia 31 de Dezembro constitui uma OVERDOSE de emoções. Só mesmo nervos de aço e corações de pedra podem passar ilesos por dias tão densos, tão intensos e tão carregados de significação. É emoção demais para ser digerida em pouco tempo. E tome ressaca, empanturramento e indigestão. Com isso não estou me referindo aos excessos físicos. Refiro-me aos excessos psíquicos de que ninguém consegue escapar.

A mente humana é engraçada. É capaz de digerir quase tudo, mas requer uma condição: que lhe seja dado TEMPO para a digestão. É como aquele caipira a quem se perguntou se seria capaz de comer um boi. Sem pressa alguma, respondeu: "É claro que sou. É só me dar um ano. De churrasco em churrasco em chego lá."

Como a cada fim de ano somos quase obrigados a comer um "boi" em apenas uma semana, ficamos expostos às ressacas, às indigestões e aos empanturramentos psíquicos. Os sintomas decorrentes são vários: vulnerabilidade emocional, turbulências interiores, ansiedades, agonias e tristezas, tudo envolto em um clima de apreensão e irritabilidade. Nasce uma preguiça enorme, que vem a ser sinal de exaustão e desejo de recolhimento e repouso.

Não bastassem esses sintomas gerais, que ocorrem sempre que estamos vivendo sobrecargas, ainda existem os sintomas específicos, que correm por conta do significado de cada uma dessas festas.

O Natal é tempo de balanço da qualidade dos vínculos que estabelecemos com aqueles que nos são mais próximos. É tempo de avaliação do amor que damos e recebemos. Não do amor público, social, abstrato, universal, quase impessoal, mas do amor mais íntimo, concreto e personalizado que existe. Nesse sentido, o Natal é o oposto do Carnaval. As emoções carnavalescas não dizem respeito aos nossos amores permanentes e cotidianos. Dizem respeito aos encontros e desencontros dos pierrôs, arlequins e colombinas que cada um traz dentro de si. O Carnaval, portanto, conta nossas realizações e frustrações em relação aos sonhos secretos de amor que todos sonhamos - os encontros e desencontros enamorados, os namoros bem e malsucedidos. O Carnaval é, assim, tempo de balanço de nossa capacidade de despertar magia e sedução.

Já a Passagem de Ano é uma festa híbrida. Contém todos os elementos do Natal e do Carnaval. Não é a toa que tanta gente cumpre sempre um mesmo ritual. Até a meia-noite a pessoa fica com a família, para, em seguida, afogar as mágoas sambando pelas ruas e pelos salões, em cadência de folia.

No entanto, a Passagem de Ano é mais complexa ainda. Não só contém emoções natalinas e carnavalescas, como também contém emoções mais amplas ainda. Na realidade, trata-se de um tempo de balanço. Mas não só de balanço familiar e dos amores enamorados. Trata-se de um balanço geral, que engloba TODOS os aspectos de nossa vida. Tudo o que fomos e deixamos de ser. Tudo o que realizamos e não conseguimos realizar, desde o passado mais longínquo até o presente mais imediato. A tudo isso somam-se as esperanças e apreensões de um novo ano que se inaugura. Ocorre-nos então uma pergunta decisiva: nosso futuro será mais auspicioso que nosso passado? Pergunta que põe em questão toda nossa vida.

Sem dúvida, são muito intensas as reflexões propiciadas por essa época do ano. Não é a toa que tanta gente vive com apreensão um momento tão denso de emoções, concentradas em um curto período de tempo.

Por fim, a Passagem de Ano é a época da confraternização universal. Devido a esse aspecto, evoca a qualidade de nosso relacionamento com o mundo. Trata-se de uma festa em que somos avaliados. E essa avaliação se dá tanto no plano privado quanto no plano público. Por isso, é possível dizer, sem cair no exagero, que dificilmente há comemoração comunitária mais complexa que a festa de Passagem de Ano. Complexidade que se traduz na soma de emoções, muitas vezes conflitantes, que acometem praticamente todas as pessoas.
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