<Meio da madrugada. Minha filha, bebê, choraminga pela babá-eletrônica. Acordou com fome. Meu ritual de todas as noites, pego a mamadeira e vou com ela até a porta de seu quarto. No que giro a maçaneta, ela para de choramingar. Fiquei pasmo, pois ali havia se dado nossa primeira comunicação por símbolos. Seu choro era um chamado, o ruído da maçaneta, uma resposta. Ela não precisava continuar chamando, por isto parou. Símbolo é algo que serve de referência para outras coisas ou idéias.
“Ora, isto é apenas reflexo condicionado, coisa de que qualquer cão é capaz, vide Pavlov”. Sim, mas o condicionamento de reflexos é apenas outra maneira de se descrever nossa capacidade de formar símbolos. Ainda que rudimentar, seja nos cães, seja na minha filha de meses, o programa mental que junta acontecimentos a sons ou imagens a partir de memórias, fazendo que um signifique muitos, está em nossos cérebros.
Está cada vez mais difícil completar a frase “o ser humano é o único animal que…” Pensamos hoje que é a quantidade, e não a qualidade, o fator determinante de nossa complexidade.
Mas a quantidade é assombrosa quando nos diz respeito. Volto à minha pequena, lembrando a primeira palavra que disse. Era um verbo no passado. Vendo que a água do copo parara de verter, anunciou: “Cabô”. Ali estavam representados conceitos amplos, como o de finitude, limites, volumes, desapontamento etc. De forma rudimentar, claro, mas as portas estavam abertas para que a complexidade de sua expressão, de seu pensamento, nunca mais parasse de aumentar, vida afora.
Disse que os ingleses tiveram uma sorte enorme com a invasão normanda, que lhes trouxe o latim para enriquecer o tosco anglo-saxão que falavam. Vendo a extraordinária série “Downton Abbey”, percebi que o roteirista quase só pôs derivados do latim na fala dos personagens, quer os do andar de cima, quer da criadagem. Para ilustrar o ganho de complexidade, pego o uso de “enter” no lugar de “come in”. Este tem uso restrito, prático. Aquele contém desde a permissão para abrir a porta e avançar, até nossas “entradas e bandeiras”, o partilhar da intimidade, o acolhimento, as conquistas territoriais.
Lembrei de um cartaz: “Quem não lê, mal fala, mal ouve, mal vê”. E me lembrei da diferença entre o olho que sabe e o olho que vê. Um burro olhando para um palácio usa o olho que vê. Um arquiteto culto usa o olho que sabe, e assim percebe as cornijas, as ameias, os capitéis, as gárgulas, os frontões, a história, a época, a mitologia, as batalhas, as armas de defesa (a começar pelo próprio castelo, que não é uma moradia qualquer), a economia, as castas, a política, um mundo de informações contido naquelas pedras empilhadas.
O que só pôde ser percebido porque aquele “Cabô” da primeira infância veio conversando com o mundo, enriquecendo-se com os livros, os dicionários, as línguas estrangeiras, os meios de comunicação. Com a santa internet, aquela que nos dá o Google e as enciclopédias. Assim, a capacidade de simbolizar do “Cabô” não se acaba jamais.