Hoje ouvi um locutor da FM O Dia dizer que um ouvinte com quem dialogava iria dar um alozaço para todos os outros ouvintes que seguiam o programa. Esse alô ampliado ecoava o Abraçaço do título de meu disco novo aos meus ouvidos. Mas evidentemente não tinha vindo daí. Ao contrário, o locutor usou o sufixo com a espontaneidade do hábito e eu seria capaz de afirmar que, pelo ritmo da aparição da expressão em sua fala (e pela ausência total de autoconsciência depois de proferida a palavra), ele não tinha sequer conhecimento da existência do meu CD.
Para mim, era a glória: comprovava-se a abrangência do uso desse aumentativo. Como neguinho, que usei numa canção que fiz para o disco de Gal, gosto muito menos de ouvir ou ler abraçaço como se fosse invenção minha (ou uso que dá à expressão habitual um sentido especial) do que de reencontrar o fenômeno em estado puro. Ouço pessoas dizerem neguinho ao referir-se a um sujeito indeterminado, sem nem se lembrarem ou saberem que há aquela canção e fico feliz. Alozaço foi até mais longe do que eu esperaria. Golaço, jogaço e filmaço são as aparições mais frequentes. Mas ouço muito cansadaço e atrasadaço não tão raras vezes.
Em espanhol usa-se o azo com, no mínimo, igual liberalidade. Uma conhecida minha, uruguaia, me lembrou que muitas vezes esse sufixo indica fatos políticos pesados e nada alegres: no Chile, fala-se do golpe de 11 de setembro como o Pinochetazo etc. Na biografia de Marighella de Mário Magalhães encontrei o sufixo caracterizando um ato político dos anos 30 ou 40, não me lembro agora qual (há anos me prometo passar a fazer anotações nas páginas dos livros que leio, mas a ilusão de que minha memória é a mesma de quando eu tinha 19 ou 23 anos não me abandona quando me deparo com algo que quero guardar para citar embora já faça muito tempo que já não tenho 23 e muito menos 19 anos).
Falando de Marighella, na canção que fiz sobre ele chamo-o apenas de um mulato baiano, sem nunca mencionar-lhe o nome. Impressionou-me ler, no mesmo livro de Magalhães, que, ao ser perguntado por uma moça que se registrava no Partido Comunista quem era ele afinal (o narrador não diz o que levou a moça, aliás uma poeta, de nome Ana Montenegro, a fazer a pergunta), Marighella respondeu: Sou um mulato baiano. Ler isso foi como ouvir o alozaço do rádio hoje.
Claro que Marighella era baiano e era mulato (embora esse segundo atributo não fosse muito mencionado no fim dos anos 1960, quando me familiarizei com seu nome), mas que ele tivesse preferido identificar-se assim em vez de pelo nome é algo que só comparo à surpresa que foi ver o adjetivo clara surgir, por força da ideia e da rima, no final de um verso da mesma canção: logo depois de cantá-la (ainda preenchendo com palavras a repetitiva melodia) me dei conta de que a mulher dele se chamava Clara.
Achei tão bonito que o nome tivesse vindo assim, sem que eu planejasse, que logo precisei enumerar nomes femininos para frisar o sentido de nome próprio do adjetivo surgido (e a alegria de ter sido surpreendido por isso). E os nomes de mulher que precisei citar se mostraram logo referentes às grandes figuras femininas das religiões. Iemanjá, Maria, Iara, me pareceu abranger tudo o que precisava ser dito, as três raças (tristes?) representadas em boa rima e boa métrica inclusive com o final do nome de Maria ecoando no começo do de Iara.
Mas o verso me excitou tanto que mais ideias vieram à minha cabeça e eu quis incluir o Islã e o judaísmo. Iansã veio fazer par com Iemanjá (e dar superioridade numérica às deusas africanas) porque precisei invocar Cadija e Sara. O que me arrepiou foi que Isa Grinspun Ferraz, sobrinha de Clara Charf, que dirigiu o filme sobre o guerrilheiro, me disse que as duas irmãs de Clara se chamam Iara e Sara (esta última sendo a mãe da cineasta).
Canções nascem de muitos fatores. Um abraçaço talvez tenha nascido da palavra (embora tenha ido para longe dela, em seu tom melancólico). Um comunista nasceu do sonho de Jorge Amado de erguer um monumento a Marighella, da minha vontade de entender as posições que tomamos no leque político (para o que a crítica de Schwarz a meu Verdade tropical contribuiu), da necessidade de liberdade de tratar de assuntos que se nos impõem em formas que supúnhamos abandonadas. Meu desejo é que tudo isso possa contribuir para que aprendamos a manter a calma em momentos complexos, ricos e perigosos, como talvez sejam os dias que atravessamos. O Brasil tem podido não recair no populismo latino-americano antigo. Que possa driblar, com o charme que FH e Lula souberam demonstrar, solavancos sociais.