Jung compara os
pressentimentos a uma bússola interior – uma função psíquica que utiliza os
cinco sentidos para produzir novas conclusões que não dependem da realidade
concreta.
Às vezes nos perguntamos se
vale a pena dar ouvidos à voz interior que, como um alarme, pode sugerir algo
inusitado ou mudanças de rumo em nossas vidas. Ou podemos acreditar que o apelo
– vindo sabe-se lá de onde – não passa de cisma. O fato é que o modo como
reagimos a esses “avisos” pode fazer toda a diferença em nosso cotidiano. E não
são poucos os relatos a respeito.
Você provavelmente deve se
lembrar dos comentários, logo após o terrível acidente que matou Ayrton Senna
(1960-1994), em 1o de maio de 1994, em Ímola, na Itália. Quem compartilhava sua
intimidade chegou a dizer que na noite anterior à fatídica corrida o piloto
estava inquieto, arredio, como que prevendo algo que não soubesse explicar. O
mesmo insight aconteceu com um dos integrantes da banda Mamonas Assassinas, o
vocalista Dinho, que num vídeo amador deixou gravado seu mau presságio em
relação àquela viagem, 2 de março de 1996, sem entretanto, dar a devida
importância à sua percepção. As consequências dessas atitudes todos nós
conhecemos.
Também já passei por várias
experiências semelhantes, e a mais marcante aconteceu anos atrás, numa viagem.
Eu e uma amiga havíamos planejado férias de um mês, mas duas semanas depois de
nossa partida tive uma noite péssima: sonhos terríveis me acordavam
praticamente de hora em hora, como que impondo a decisão de antecipar minha
volta para dali a dois dias. Foi o tempo necessário para despedir-me de minha
irmã, que morreu exatamente na manhã seguinte ao meu desembarque em São Paulo.
Tanto o senso comum quanto
pesquisadores poderiam atribuir à minha percepção o rótulo de premonição,
bruxaria. Mas é certo que algum atributo do nosso aparelho psíquico tem essa
fantástica habilidade de enviar mensagens, que cada pessoa interpreta à sua
maneira. É assim que a intuição age: segundos preciosos carregados de
significado, e isso tanto para a vida afetiva quanto nas atividades profissionais.
Todos nós temos a capacidade de registrar e compreender ou excluir essa
linguagem de nossa vida. Chamada popularmente de sexto sentido, ela não é um
predicado restrito às mulheres, embora muitos afirmem que nós somos mais
intuitivas que os homens. Entretanto, há quem tenha maior ou menor facilidade
para lidar com essa habilidade e desenvolvê-la que aparece nas mais variadas
manifestações do nosso psiquismo: nos sonhos, nas sensações corporais, nos
insights e nos atos criativos. Dizem que os gênios da música Ludwig van
Beethoven (1770-1827) e Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) atribuíram à
intuição suas maiores realizações.
A intuição capta fragmentos das experiências
de forma simbólica, imaginativa, de maneira que esses pequenos estilhaços
possam ser organizados para compor uma espécie de vitral ou caleidoscópio, cuja
combinação faz surgir um todo inovador. Mas para que essa nova informação
aconteça deve-se abrir mão do raciocínio e da lógica, pois apesar de ela não se
opor à razão, situa-se fora dos seus domínios. Enquanto uma procura organizar
os fragmentos de forma coerente, a outra busca uma combinação harmoniosa, obtida
pela via da imaginação, do relaxamento e da quietude.
O psiquiatra Carl Gustav
Jung (1875-1961) criador da psicologia analítica, chamou a prontidão para
compor esse vitral, tirando o máximo proveito do jogo que se forma entre luzes
e sombras, de intuição, no qual flashes criativos desvendam possibilidades. A
intuição é nossa habilidade de perceber o que pode vir a acontecer; pressentir
o que ainda não está visível e reconhecer potencialidades ainda não realizadas.
Essa característica é muito comum em empresários audaciosos, que têm a ousadia
de projetar e comercializar projetos inovadores; em jornalistas e editores que
“farejam” no mercado qual título será bem aceito no ano que vem; nos corretores
da bolsa de valores, cuja destreza em prever a alta de determinado papel no
mercado financeiro pode tornar seus clientes milionários; nos marchands, cuja
capacidade de avaliar o potencial criativo de um pintor ou escultor surge antes
mesmo que eles se deem conta da real qualidade de suas obras; em videntes,cartomantes,
tarólogos e outros profissionais que trabalham com terapias alternativas, cuja
extrema sensibilidade à atmosfera do lugar e às características das pessoas que
os procuram, são capazes de revelar inúmeras coisas a seu respeito.
Fruto de seu próprio processo
individual e de um período que Jung chamou de “doença curativa”, descrito em
sua autobiografia Memórias, sonhos, reflexões (1961) o capitulo “Confronto com
o inconsciente”, no volume VI de suas obras completas no qual expõe a teoria
dos tipos psicológicos, ajuda-nos a compreender o que, na época, o autor
sistematizou sobre o psiquismo. Aliás, nunca mais se viu uma obra sua com tal
característica, tão cientificista. Publicado em 1921, o texto é o resultado de
quase 20 anos de trabalho na prática clínica e a primeira produção intelectual
depois do seu rompimento com Freud. Nele, o psiquiatra suíço constata que além
das muitas diferenças individuais na psicologia das pessoas, existem também
diferentes maneiras de nos relacionarmos com os fatos cotidianos.
No lugar de dividi-las em
categorias, Jung tentou diferenciar os indivíduos por meio de suas
singularidades, propondo duas atitudes e quatro movimentos psíquicos como os
modos pelos quais a alma registra e reage às experiências da vida. Jung
percebeu que o destino de uns é fortemente determinado pelos objetos de seu
interesse, enquanto o de outros é regido pelo seu mundo interior, pela
subjetividade. Isso faz com que as pessoas se inclinem naturalmente a lidar com
a realidade sob a influência desses fatores. Ou seja, de um modo bem genérico,
há quem tenha mais interesse pelo mundo dos objetos, dando a eles um valor
preponderante que os atrai como um ímã (os extrovertidos) e aqueles cujo
movimento psíquico não vai para o objeto, mas se volta para o sujeito e para
seus próprios processos psicológicos (os introvertidos).
Ao lado das duas atitudes
predominantes (a extrovertida e a introvertida), Jung também constatou a
preponderância e quatro movimentos psíquicos básicos: pensamento, sentimento,
sensação e intuição, funções da consciência que se inter-relacionam com certo
grau de mobilidade e fluidez, permitindo à pessoa experimentar todas as funções
sem fixar-se naquela com a qual tenha mais familiaridade. Essa relativização
das funções significa que não há um tipo puro, pois todas as atividades
psíquicas são importantes para a vida saudável do indivíduo. Para tirar o
máximo proveito da função intuitiva, ela precisa estar conectada com as outras
funções, porque o pensamento é indispensável para organizá-la e só por meio da
sensação somos capazes de realizá-la.
Jung comparou a intuição a
uma bússola interior – uma função psíquica na qual a percepção dos fatos se dá
por meio do inconsciente, utilizando os cinco sentidos (visão, paladar,
audição, olfato e tato) para chegar a uma nova conclusão, que não depende da
realidade concreta. Para ele, a intuição é uma espécie de apreensão instintiva
e seu conhecimento é dotado de certeza e convicção intrínsecas. A atividade
imaginativa da intuição descortina novos horizontes e perspectivas
indispensáveis ao nosso tempo, sendo o desenvolvimento dessa função uma das
mais importantes tarefas da psicoterapia contemporânea.
OLHAR DE LONGE
Do verbo intuire, que
significa olhar para dentro, a intuição não é uma sensação dos sentidos(apesar
de se utilizar deles), nem um sentimento ou uma conclusão intelectual, ainda
que também possa aparecer sob essas formas. Nele, qualquer conteúdo se
apresenta como um todo acabado, sem que saibamos explicar ou descobrir como
esse conteúdo chegou a existir. Jung menciona que o filósofo Spinoza
(1632-1677) considerou a scientia intuitiva como a forma mais elevada de
conhecimento, sendo sua exatidão atribuída a algum conteúdo que repousa no
inconsciente.
As pessoas que orientam sua
atitude geral pelo princípio da intuição e, portanto, pela percepção por meio
do inconsciente, pertencem ao tipo intuitivo. E assim como as demais funções, a
intuição pode ser extrovertida ou introvertida, conforme seja a sua utilização:
para o conhecimento ou contemplação interior, ou para fora, para as realizações
e o desempenho.
HABILIDADE INTUITIVA
é característica tanto de
pessoas que trabalham com terapias alternativas e predições, quanto de
empresários sagazes e empreendedores criativos Segundo a psicóloga Marie-Louize
von Franz (1915-1998), no livro A tipologia de Jung (1967), para a intuição
“funcionar”, as coisas precisam ser olhadas de longe, ou de modo vago. Só assim
é possível captar esse pressentimento vindo do inconsciente, porque quando o
foco está voltado para os fatos da realidade exterior essa qualidade quase
mágica não tem espaço para se manifestar.
É por isso que os intuitivos
quase sempre são imprecisos e vagos... Pessoas “visionárias”, no bom sentido,
cujas habilidades ganham um papel indispensável no mundo competitivo. Tanto
que, atualmente, as empresas valorizam um novo perfil de profissional:
indivíduos com aptidão para identificar tendências sem precedentes e com boa
noção intuitiva para extrair tendências coerentes de dados conflitantes; que tenham
capacidade para pensar além dos limites convencionais; dotadas de habilidade
para influenciar atitudes e opiniões, além de disponibilidade para abraçar as
incertezas.
É o que Katharine Cook
Briggs e sua filha Isabel Briggs Myers – criadoras do Myers Briggs Type
Indicator (indicador de tipos Myers Briggs) –, com base na tipologia junguiana,
propõem como solução para o sucesso empresarial: a busca de profissionais
capazes de descobrir novas formas de fazer as coisas,
equilibrando um planejamento calculado com ações intuitivas.
Ao emprestar do matemático
Arquimedes de Siracusa (287-212 a.C.), a expressão “Eureca!”, o jornalista
Nelson Blecher definiu com precisão o que a intuição significa para o mundo dos
negócios. Em um artigo publicado em outubro de 1997, na revista Exame, ele
apresenta inúmeros motivos para sua crescente valorização, entre eles a
imprevisibilidade dos consumidores, a aceleração das mudanças econômicas e
tecnológicas, que tornaram as coisas extremamente complexas, a exigência de
soluções adequadas aos novos esquemas de produção e fontes de suprimentos.
E se para essa habilidade
inata do ser humano só existe um freio – aquele que nós mesmos colocamos –, a
atitude fielmente junguiana para deixá-la seguir seu curso ou facilitar sua
emersão da profundidade do inconsciente é um mergulho no autoconhecimento: um
processo capaz de tirar da escuridão essa habilidade, ainda hoje,
frequentemente menosprezada.
SILVIA
GRAUBART
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