Imagine ouvir de seu amante a fórmula:
“te amo como amei todos os outros (ou outras) antes de você”. Péssimo, não é?
Defendo a ideia de que o casamento é uma espécie de perversão consentida, uma vez que tenta aplicar regras de contrato, uso e usufruto, que regem as nossas relações com coisas, às relações entre pessoas, que se definem por suas demandas particulares de liberdade. Vários leitores(as) escreveram pedindo mais esclarecimentos, objetando que são felizes com seus cônjuges e não veem nada de patológico em serem tratados(as) segundo regras que compreendem uso exclusivo do corpo e da intimidade seja sob forma de compromisso ou posse. Aqui vai o segundo capítulo desta conversa sobre os limites de nosso direito ao gozo do outro.
Costumamos caracterizar os perversos como aqueles que possuem uma relação com a lei diferente da nossa. Eles cometem crimes e não se sentem culpados. Eles recusam as modalidades de prazer, gozo e satisfação que nós designamos como normais e deveriam ser, compulsoriamente, seguidas por todos. Uma concepção mais atualizada sobre o assunto dirá que os perversos nos parecem pessoas “malvadas”, mas não apenas porque eles vivem em outra forma de lei, criada e administrada por eles mesmos, mas porque tentam forçar o outro a gozar segundo essa lei que caprichosamente criaram.
Lembremos que a antiga e aposentada categoria de perversão sobrevive no atual DSM-5 como personalidade antissocial, cujos signos clínicos são: fracasso em se conformar às normas sociais, mentira, impulsividade, irritabilidade agressiva quando contrariado, falta de preocupação com segurança, irresponsabilidade em se sustentar e ganhar dinheiro e ausência de culpa ou remorso. Ou seja, o perverso é aquele que presume um lugar especial para si mesmo, uma espécie de excepcionalidade diante a lei.
Ocorre com o casamento exatamente a mesma coisa, mas com uma diferença substancial, fazemos as mesmas coisas, mas não para realizar nossos próprios desejos egoístas de uso do outro, mas como prova de que isso atesta nosso amor mais verdadeiro. Nada menos inquietante para um irmão ciumento do que ouvir de seus pais algo como: “Nós amamos você exatamente igual aos seus irmãos”. Ser amado como mais-um em uma espécie de regra cujo enunciado é para-todos mata qualquer forma de amor verdadeiro. Experimente ouvir de seu amante, ainda que como exercício de imaginação, a fórmula: “Te amo como amei todos os outros (ou outras) antes de você”.
Péssimo, não é? É que o amor verdadeiro é aquele que tem força para criar exceções e não se mantém sem a renovação disso. Ele não se conforma às normas, ou você se contenta com um “amor normal”? Ele nos leva a mentir, não para enganar e levar vantagem, mas porque em nome do amor protegemos o outro das chamadas verdades dolorosas. Ele é impulsivo e não premeditado, pois nos torna agressivos e inseguros diante da possibilidade de perder o outro. Finalmente, no amor verdadeiro suspendemos a segurança e queremos o risco, uma vez que em nome dele não há culpa, remorso ou interesse financeiro.
Todos esses traços são perfeitamente ocorrentes nesse estado de debilidade e rebaixamento cognitivo provisório chamado apaixonamento; no entanto não queremos permanecer nessa vida em estrutura de encontro, sem futuro certo e garantido. É para isso que inventamos o casamento. O melhor dos dois mundos: força da lei e a garantia da exceção. Daí a fórmula de que o casamento é uma espécie de perversão consentida.