Saí hoje cedo para caminhar com o objetivo de sempre: mexer o corpo, chacoalhar as ideias e ver a vida como ela é. A colheita não poderia ter sido melhor. Assim que dobrei a esquina, consegui minha dose diária de surpresa boa – tão necessária para mim quanto o sol.
Meninas de 20 e poucos anos exibiam um cartaz que anunciava abraços grátis. Achei que fosse mais uma ação promocional das construtoras de apartamento que, nos últimos meses, passaram a perturbar os moradores na porta de todas as padarias da região.
Estava pronta para repetir o meu clássico “Não estou
comprando nada. Só pão”, quando uma das garotas se aproximou. Meus braços foram mais rápidos que o raciocínio. Aceitei o abraço, retribuí, me emocionei. Talvez elas não tenham percebido (eu estava de óculos escuros), mas acho que meu corpo falou por mim.
comprando nada. Só pão”, quando uma das garotas se aproximou. Meus braços foram mais rápidos que o raciocínio. Aceitei o abraço, retribuí, me emocionei. Talvez elas não tenham percebido (eu estava de óculos escuros), mas acho que meu corpo falou por mim.
Essa sou eu. As meninas são estudantes de enfermagem do Centro Universitário São Camilo. Nosso encontro melhorou meu dia.
A ideia de oferecer abraços em locais públicos se espalhou pelas cidades brasileiras nos últimos anos. São iniciativas inspiradas na campanha Free Hugs, criada em 2008 por um australiano. Os propósitos são variáveis.
Algumas ações são nobres e humanitárias. Outras não passam de estratégias comerciais para promover sites, empresas ou palestras de autoajuda.
No caso da enfermagem e da psicologia, a justificativa é a melhoria da qualidade de vida. Estudos demonstram que abraçar reduz os níveis de cortisol e norepinefrina, hormônios relacionados ao estresse crônico e à ocorrência de doenças cardíacas.
O abraço também aumenta a produção de dopamina e serotonina (hormônios do prazer) e de oxitocina (o hormônio do afeto). Quanto mais oxitocina o cérebro libera, mais a pessoa quer ser tocada e menos estressada ela fica. É um círculo virtuoso: quanto mais abraçada ela é, mais ela deseja ser abraçada.
Um estudo realizado no ano passado pela Universidade Médica de Viena demonstrou que o abraço pode mesmo reduzir o stress, o medo e a ansiedade. A oxitocina liberada contribui para a redução da pressão arterial, aumenta o bem-estar e favorece o desempenho da memória.
No entanto, o neurofisiologista Jürgen Sandkühler, autor do trabalho, questiona o valor dos abraços recebidos de pessoas estranhas. A oxitocina é o hormônio produzido pela glândula pituitária, conhecido por favorecer o estabelecimento de laços afetivos entre pais e filhos e entre os casais.
“O efeito do abraço sobre a produção de oxitocina só ocorre quando existe confiança mútua”, diz. “Se o abraço não é desejado pelas duas pessoas, o efeito positivo se perde”, diz.
Em resumo: as pessoas precisam estar na mesma sintonia. Acredito que isso seja perfeitamente possível entre estranhos. Não sei se o nível dos meus hormônios aumentou, mas a iniciativa das estudantes de enfermagem alegrou meu dia. Espero que elas não percam a ternura quando a realidade da profissão se apresentar.
Como essas meninas, acredito que o bem-estar pode ser contagiante. Ao final de nosso breve encontro, uma delas me ofereceu uma flor feita com capricho e papel crepom.
Resolvi testar o poder da flor. Durante uma hora caminharia com ela na mão e observaria a reação de quem cruzasse meu caminho. Será que alguém notaria alguma coisa fora do script? Será que um sorrisinho escaparia dos lábios?
Na fila para pagar o cafezinho, notei a primeira demonstração de boa vontade. A flor escapou enquanto eu abria a carteira. Com a expressão tensa, o gerente correu para avisar: “Moça, alguma coisa caiu”. Abaixei para pegá-la e respondi: “Foi a flor”.
Ele abriu um sorriso raro, sem nenhuma ruga na testa.
Ele abriu um sorriso raro, sem nenhuma ruga na testa.
Segui meu caminho, em busca da dose diária de sol recomendada pelo médico e da vida que não está em nenhuma ferramenta de busca. Uma moça aflita olhou a flor e teve coragem de se aproximar.
“Por favor, estou numa emergência. Você pode me ajudar?” Quando perguntei qual era o problema, ela virou de costas e levantou a blusa. O fecho da roupa, na parte das costas, havia arrebentado. Restavam duas metades de tecido. A garota tinha uma entrevista de emprego num restaurante a poucos passos dali. Estava apavorada.
Para surpresa dos pedestres, parei na calçada para amarrar as duas partes da blusa de uma desconhecida. Tentei dar o melhor nó possível. Com uma jaquetinha jeans, ela cobriu o estrago. Depois agradeceu por eu ter aparecido na hora certa, no lugar certo. A flor não saíra da minha mão direita.
Três quadras depois, ela escapou, levada por uma ventania. Na tentativa de recuperá-la, cruzei a frente de cinco policiais. Com passos sincronizados e olhos bem abertos, eles registraram o único sinal aparente de desordem civil. A mulher que corria atrás da flor de papel crepom. Renderia uma foto de primeira página, mas acho que ninguém viu.
Voltei para casa com uma supersafra de gentilezas. Nunca ouvi, numa única manhã, tanta gente me desejando bom dia, tanto motorista me dando passagem, tanta conversa, tanto olho no olho, tanto sorriso. O tênis, a roupa, o percurso eram os mesmos. O que mudou foi o abraço e a flor.
Só um pedestre não viu nada. Bateu o portão de um prédio com fones enterrados no ouvido, óculos bem escuros, mochila estufada, ombros curvados para frente – aquele visual e aquele comportamento que são a marca do nosso tempo. Não do meu tempo, mas o de muita gente. Quase me atropelou, mas não notou minha presença. Muito menos a da flor.