Qualquer grupo de insatisfeitos com a falta de um muro
em sua rua bota fogo num sofá e fecha a avenida, infernizando a vida de
centenas de milhares
Todo mundo que conheço achou uma coisa fantástica a
greve dos garis no Rio. Eu não. A Comlurb (Companhia Municipal de Limpeza
Urbana) tem sido, há muitos anos, considerada uma empresa modelo, boa de se
trabalhar e bem avaliada pela população. A imprensa cansou de dar matérias
sobre seus funcionários --um deles, Renato Sorriso, chegou a ser um símbolo da
cidade. E até há pouco tempo era assim.
De repente, os garis do Rio se transformaram em pessoas
exploradas, mal pagas e protagonistas de uma greve legítima para ter o direito
de ganhar cerca de R$ 1.800. Tudo bem. Eles têm os seus direitos. O que achei
estranho foi terem feito a greve contrariando uma decisão da Justiça e do
próprio sindicato, o que deixou a prefeitura sem interlocutor. E pior:
deflagraram o movimento em pleno Carnaval.
Ora, uma greve de lixo é sempre um trauma para qualquer
cidade. Por ser uma greve tão visível, que causa transtornos imensos, um
movimento como esse tem sempre enorme poder de barganha. Se os garis do Rio
tivessem feito uma greve de advertência algumas semanas antes do Carnaval,
certamente teriam tido um bom resultado em suas negociações. Mas não.
A greve deles foi feita de uma hora para outra, e o que
vimos? A cidade cheia de turistas e inundada de lixo. A ponto de o prefeito
Eduardo Paes (PMDB) ter atendido a quase todas as reivindicações deles para
evitar o caos absoluto, porque havia previsão de chuva forte para o dia
seguinte.
Na época, li o noticiário com a sensação de que aquilo
era uma chantagem. Que o prefeito, sem opção, estava se rendendo a ela. E não
pude deixar de pensar: e se os garis decidirem fazer o mesmo na Copa do Mundo?
Sem sindicato, desrespeitando a Justiça e pedindo, digamos, salários de R$
5.000? E se os aeronautas também decidirem entrar em greve? E os motoristas de
ônibus? E os policiais? Será que existe um plano de contingência capaz de lidar
com isso?
Até a greve dos garis no Rio, tínhamos pelo menos a
garantia de que haveria a palavra da Justiça, a decisão sobre se uma
paralisação é ou não legal. Quando eu trabalhava como jornalista, havia algumas
máximas que circulavam nas redações, verdadeiras cláusulas pétreas. Uma delas
era "Decisão da Justiça não se discute. Cumpre-se". Mas hoje, como
sabemos, até um ex-presidente da República afronta as decisões judiciais legítimas,
tomadas por ministros indicados por ele.
E, enquanto isso, nosso país vai caminhando, à catraca.
Qualquer grupo de dez ou 12 pessoas insatisfeitas com a falta de um muro em sua
rua bota fogo num sofá e fecha a avenida Brasil, infernizando a vida de
centenas de milhares. O mesmo pode acontecer na avenida Copacabana ou na
avenida Paulista, a qualquer momento, pelos mais diversos motivos, justos ou
não. Incendiar ônibus e automóveis é coisa que agora acontece quase todos os
dias nas nossas cidades --nem sempre isso é feito apenas por bandidos.
No Brasil, é assim: oito ou 80. Ou estamos inertes,
aceitando de braços cruzados os governos e desgovernos mais absurdos, ou de
repente despertamos e aí não paramos mais. É o dilema que vivemos hoje.
O
gigante acordou. Mas ele precisa ter aulas de civilidade.