Assim era o nosso mundo,
feito de países de elite: grandes, adiantados, civilizados e resolvidos. Neles,
nada faltava e por isso eram o oposto do Brasil, onde faltava tudo
Sou do tempo em que se
discutia qual era o maior país do mundo. Éramos tão ignorantes e ingênuos que,
mesmo neste vale de lágrimas, acreditávamos na existência de nações sem
problemas.
Um sujeito dizia que a
França era o cara; mas um outro arguia que não: o lugar era dos alemães porque,
além da excelência nas suas máquinas inquebrantáveis, eles tinham reinventado a
religião, a literatura e a música. Já um terceiro lembrava que os americanos
ganharam o guerra e que, sem ter tido dissidências internas que desembocavam no
terror ou no nazismo, davam valor à iniciativa individual e inventaram o filme
colorido e musicado. Mal dizia isso, porém, um outro notava a velha Inglaterra
da Revolução Industrial e do estado de bem-estar social. O primeiro país a
equilibrar democracia com aristocracia, equilibrando ricos e pobres. Essas
classes que em todo lugar viviam sem classe.
Era a deixa para alguém
falar da União Soviética e situá-la como o modelo de um paraíso já em curso. Avassalador
e irresistível como a manifestação mais clara das leis do progresso histórico,
liberada pelo partido — esse instrumento da liberdade concreta e do fim do
ardil burguês — do capitalismo condenado à morte pelo seu próprio
funcionamento.
Tal era o debate nos meus
tempos de juventude quando, numa praia de Icaraí sem poluição, eu ouvia o
Pezinho, o Silvinho, o Enylton e o Moliterno, para ficar nos mais queridos,
essas preocupações que se reproduziam na casa de vovô Raul quando meus tios
discordavam sobre os melhores automóveis, navios, aviões e, creiam-me!,
navalhas. Aliás, esse era o único assunto que fazia meu pai falar e introduzir
no campo dos países exemplares a Suécia, pois somente ele barbeava-se com o
inigualável aço de navalhas escandinavas.
Com a Suécia, surgia a
Holanda. Uma Holanda conhecida pelos moinhos de vento, pois nada sabíamos de
sua trajetória cultural marcada pelo calvinismo, pelo grande Espinosa e pelas
suas famosas putas em vitrines, como a confirmar o que freudianamente sobra
quando se combate extremadamente a sexualidade. Havia um imenso toque de
provincianismo e pós-guerra nesses debates, razão pela qual surgia o Japão como
eventual bandido e a China como uma espécie de doente perdido e, imaginem,
irrecuperável.
À nossa pátria — esse
Brasil feito de lusitanos, índios e negros escravos — que era o lanterninha do
mundo, cabia o papel de ator estreante cujas linhas mal decoradas não
convenciam no palco onde brilhavam esses gigantes “adiantados” que por suposto
e definição haviam dado certo e resolvido tudo.
Isso era tão verdadeiro
que ouvi de um professor que a própria língua já determinava o lugar das “raças
humanas”, conforme era comum classificar as sociedades daqueles dias antigos e
ferozes.
“Tome o alemão. Só um sujeito inteligentíssimo pode dominar essa
língua complexa, criativa e desenhada para a filosofia!”, dizia ele. “E o
português?”, perguntou um colega. “Bem — respondeu o mestre sorrindo — a nossa
língua pátria é boa para o samba, para a anedota e para o mais ou menos!”
Mais tarde, descobri que o
professor havia tentado aprender alemão com um refugiado de guerra; um tal de
Otto Folterer, e que o instrutor o havia feito desistir por “falta de
inteligência”. Quando timidamente eu perguntei do meu canto como é que se
explicava que na Alemanha as crianças falavam alemão, ninguém me deu atenção.
Eram todos, como os gregos antigos, inteligentíssimos, tal como os holandeses,
que, não sei bem por que, teriam essa afinidade com os helenos e os germânicos.
Segundo a lenda, os holandeses seriam capazes de entender todas a línguas,
desde que o estrangeiro falasse devagar, soletrando as palavras.
Foi o que ocorreu com o
Soares quando ele viajou para o Holanda. Sem saber uma virgula de holandês,
lembrou-se do detalhe e pediu ao esguio e atencioso garçom holandês um bife bem
passado com fritas e um chope gelado pronunciando cada palavra monossilabicamente.
Minutos depois, chegou o garçom com o pedido. “Como você me entendeu?” inquiriu
o Soares. “Eu também sou da terrinha...” disse o holandês devagar, detendo-se
como ele em cada silaba. “E por que Diabos — explodiu Soares — estamos falando
holandês?”
Assim era o nosso mundo,
feito de países de elite: grandes, adiantados, civilizados e resolvidos. Neles,
nada faltava e por isso eram o oposto do Brasil, onde faltava tudo, até mesmo
uma língua inteligente e um conflito brutal, mas indispensável ao progresso.
Quando eu olho para a
crise europeia, apavoro-me com o radicalismo político americano que paralisa o
governo, vejo como a grande esquerda francesa e russa esboroou-se, tenho uma
certa nostalgia desse nosso Brasil inocente, mas que também faz espionagem,
explora os médicos cubanos, derruba viadutos, sonha com censura e que, de fato,
tem uma língua tão ou mais complicada que o alemão.
Essa língua que os nossos
políticos já estão falando por conta das eleições...
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