Como o linguista norte-americano se tornou um dos maiores intelectuais do mundo e teve sua teoria contestada por uma língua indígena brasileira
Antes de tirar o campo da linguística do sarcófago em que se encontrava e mostrar que essa área poderia trazer muita diversão aos intelectuais, Avram Noam Chomsky já gostava de política. Nascido em 7 de dezembro de 1928, no estado da Filadélfia, nos EUA, o pequeno Noam foi criado pelos pais, que, como muitos judeus, fugiram da Rússia depois do assassinato do czar Alexandre II, em 1881.
Ainda com 10 anos, Chomsky ficou chocado com as notícias sobre a queda de Barcelona, quando o general Francisco Franco derrubou a Segunda República Espanhola, dando início a uma ditadura que duraria 36 anos. Foi esse o tema do seu primeiro artigo, publicado no jornal da escola em que estudava. No texto, o pequeno comentarista político denunciava o fascismo de Franco.
O
órgão da fala
Na década de 1950, Chomsky já estava preparado para entrar na faculdade como um furacão. Quando concluiu a graduação na Universidade da Pensilvânia, em 1957, ele não só dominava a área da linguística como a tinha virado de cabeça para baixo.
Naquele período pós-Segunda Guerra, a onda era dar uma cara científica a tudo. Abordagens sociais, como as da sociologia e da antropologia, eram tidas como “moles”. Era preciso endurecer. Foi o que Chomsky fez. Antes mesmo de concluir o doutorado, o intelectual já dava palestras nas universidades de Chicago e Yale, apresentando sua inovadora teoria linguística. Segundo ela, as pessoas não “aprendiam” a linguagem, elas já nasciam com um órgão responsável por isso.
Sim, sem modéstia alguma, o linguista afirmava ter descoberto uma parte da anatomia humana de que ninguém nunca tinha ouvido falar. E ela ficava dentro de um outro órgão: o cérebro. Se tivesse sido comprovada, seria a maior descoberta anatômica desde que William Harvey descobriu o sistema circulatório em 1628.
Segundo essa ideia, usando um exemplo do próprio Chomsky, se um linguista marciano viesse estudar as línguas da Terra, descobriria que todos os idiomas aqui são um só, com pequenas variações de “sotaque”. Por isso, não seria preciso visitar lugares distantes, ou tribos isoladas no meio da mata para estudar línguas diferentes. Todas fariam parte de uma mesma estrutura comum.
“Ele
[Chomsky] fazia o campo de trabalho parecer mais elevado, mais bem estruturado,
mais científico, mais conceitual, mais no plano de Platão, e não apenas um
amontoado enorme de dados que os pesquisadores de campo traziam de lugares de
que ninguém nunca tinha ouvido falar antes”, escreveu o jornalista
norte-americano Tom Wolfe (1930-2018), no livro O Reino da Fala (2016). Isso
fez com que a linguística, até então um patinho feio (e quase morto) da
ciência, ganhasse tanta notoriedade quanto o próprio Chomsky.
Fluente em “politiquês”
As ideias alinhadas com o carisma e a fala mansa tornaram o especialista um alvo de honrarias constantes. Em 1979, a resenha de um de seus livros no jornal The New York Times começava com: “Julgado em termos do poder, do alcance, da novidade e da influência do seu pensamento, Noam Chomsky é, possivelmente, o mais importante intelectual vivo no mundo hoje”. Um título que ele carrega até hoje.
Em 1986, o linguista apareceu em oitavo no Índice de Citações de Artes & Humanidades da Thomson Reuters, que mapeia a frequência com que autores são citados em outros trabalhos — ele ficou atrás apenas de Marx, Lenin, Shakespeare, Aristóteles, a Bíblia, Platão e Freud.
Em 2005, uma pesquisa conjunta das revista Prospect e Foreign Policy, alçou Chomsky ao posto de maior intelectual do mundo, com o dobro de votos de Umberto Eco, o segundo colocado. Em 2010, a Enciclopédia Britânica incluiu Chomsky entre os cem filósofos mais influentes de todos os tempos, acompanhado de nomes como Sócrates, Platão, Confúcio, São Tomás de Aquino, Hume, Rousseau, Heidegger e Sartre.
Grande parte do seu legado também tem a ver com a política. Foi em 1967 que o pensador quebrou os muros da área da linguística. Com o artigo “A Responsabilidade dos Intelectuais”, publicado na New York Review of Books, ele comentou os absurdos cometidos pelos Estados Unidos na Guerra do Vietnã.
No texto, ele ainda incitava os intelectuais à ação: “É responsabilidade dos intelectuais falar a verdade e denunciar as mentiras. Isto, ao menos, pode parecer um truísmo a ponto de nem sequer merecer comentário. No entanto, não é assim. Para o intelectual moderno, isso não é nada óbvio”.
Desde então foram centenas de reflexões, acusações e alfinetadas a governos conservadores e de esquerda, em mais de cem livros e quase 300 artigos escritos com seu viés anarquista. Casado com a brasileira Valéria Chomsky desde 2014, o linguista também se mantém atualizado sobre o que acontece no Brasil.
Em entrevista à GALILEU, em 2017, ele afirmou: “Esse desprezo pela democracia é o sonho dos neoliberais. Aqui no Brasil, é bastante óbvio. É só dar uma olhada na popularidade do seu presidente [Michel Temer], que está em 7% [5%, de acordo com a pesquisa então mais recente do Ibope]. Mesmo assim, suas medidas continuam seguindo em frente”.
Depois de uma estadia em terras brasileiras em 2018, ele também opinou a respeito do presidente Jair Bolsonaro e do ministro da economia Paulo Guedes. “O Brasil tem uma enorme riqueza e recursos, que eles estão felizes em ter em suas mãos; para o futuro do Brasil é um desastre", afirmou ao site Democracy Now.
Uma
ideia dentro da outra
Em 2002, Chomsky superou a si mesmo, chegando ao ápice de sua produção de artigos linguísticos. Naquele ano, junto de Marc D. Hunter e Tecumseh Fitch, ele propôs a teoria da recursividade. Segundo essa ideia, a recursividade consiste em inserir uma frase (ou uma ideia) dentro de outra, formando séries teoricamente infinitas.
Tom Wolfe dá o exemplo com a frase: “Ele concluiu que, agora que as chances dela haviam se queimado, poderia brilhar e conquistar a fama por que sempre ansiara”. Dentro da ideia que começa com “Ele concluiu que” existem outras quatro ideias: “as chances dela haviam se queimado”, “ele poderia brilhar”, “poderia conquistar a fama” e “por que sempre ansiara”. Esse emaranhado de ideias, umas dentro das outras, compostas por 22 palavras, são a recursividade.
Para Chomsky, a recursividade era a única coisa que distinguia o pensamento humano das outras formas de cognição, o que explicaria a predominância do ser humano sobre os outros animais. Logo, a recursividade deixaria de ser entendida como uma teoria e passaria a ser vista como uma lei, tal qual a lei da gravidade.
Mas
a coisa não era bem assim...
Em 2005, um artigo publicado na revista Current Anthropology, por Daniel L. Everett, mostrou que uma tribo isolada, que vivia às margens do rio Maici, no Amazonas, os Pirahã, não possuía qualquer traço de recursividade, o que colocava a teoria de Chomsky no chão.
“Eles só falavam no tempo presente, não tinham, virtualmente, concepção alguma de ‘futuro’ ou ‘passado’, nem palavras para ‘amanhã’ e ‘ontem’, apenas uma palavra para ‘outro dia’”, explicou Tom Wolfe, dando um exemplo sobre a língua que contém somente três vogais (a, o, i) e oito consoantes (p, t, b, g, s, h, k, x).
A reação ao artigo foi instantânea. A comunidade acadêmica atacou Everett em peso. Chomsky limitou-se a chamá-lo de “charlatão”. E, em uma entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, de 2009, o linguista defendeu a recursividade: "Os falantes de pirahã têm os mesmos componentes genéticos que nós, então as crianças pirahãs tentam construir uma linguagem normal. Suponha que o pirahã não permita isso. Seria como encontrar uma comunidade que engatinha, mas não anda, de forma que as crianças que crescessem lá provavelmente engatinhariam também. As implicações disso para a genética humana seriam nulas."
Em um artigo, no site Aeon, de 2018, Everett escreveu: “Naturalmente, eu esperava que alguém apontasse falhas no meu raciocínio ou que desse exemplos claros de dados que eu havia perdido ou que fizesse uma pesquisa de campo para testar minhas alegações. Essa é a norma nos debates acadêmicos. Mas, na primeira rodada de críticas, com duração de cinco anos, o que veio em minha direção foram principalmente xingamentos”.
Da parte de Chomsky, a crítica nem avançou. O linguista simplesmente nunca mais discutiu o assunto, reelaborou suas ideias sobre recursividade e sobre o “órgão da fala” de forma que coubessem em um conceito mais amplo e seguiu em frente, como se nada tivesse acontecido.
Seja como for, Chomsky sempre será lembrado como o pesquisador que abriu todo um novo campo para a linguística, com tópicos inéditos e questões que sequer poderiam ser sonhadas antes de sua revolução. Ele ressuscitou uma área semimorta e a colocou no Olimpo da ciência.
Mas, mesmo com tanto trabalho, a verdade é que as evidências apontam que a origem da linguagem humana, no fundo, continua sendo um grande mistério — da mesma categoria em que se encontram a origem da consciência e a do Universo. Só que ao menos, para sorte da humanidade e do pensamento científico, existem pessoas que não se intimidam com isso.
Fonte: Revista Galileu
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