Ou como evitar que o amor morra afogado em nossas emoções
Vamos ser francos: nosso problema não é sexo. Isso se
arranja com facilidade. O que nos exaspera são as relações que estabelecemos a
partir do sexo, ou apesar dele. O que nos sufoca é aquilo que se faz antes e
depois de transar. A pessoa que fica ali – ou que gostaríamos que ficasse, mas
não fica – constitui nosso maior problema, e talvez nossa única solução.
Estar com alguém mais do que ocasionalmente, porém,
constitui um desafio insolúvel – tanto quanto um prazer imensurável.
As pessoas têm manias, têm temperamento, têm hábitos que nos
incomodam. Elas reclamam de tudo, pateticamente. Elas se enfurecem com tudo,
histericamente. Elas têm problemas, opiniões, desejos, amigos. Elas são lindas
e nos causam ciúme. Elas são controladoras e nos irritam. Elas podem ser
frívolas e indiferentes. Frequentemente mergulham nelas mesmas e nos deixam
entregues às apreensões e receios. Às vezes queremos que sumam, morram,
pelo-amor-de-deus desapareçam. No outro dia acordamos sem elas e o coração
perde duas batidas, de medo.
Na verdade, sofremos de sentimentos demais. Eles
transbordam, excedem, afogam. Seria infinitamente mais simples se fôssemos como
os outros. Veja o casal do elevador, o professor de natação e a namorada dele.
Obviamente felizes, simples, calmos. Trocam duas palavras e um olhar entre o
quinto e o térreo. Gente bem resolvida. É impossível que ela chore de noite por
temer que ele não a ame. Evidentemente ele não se isola diante da televisão e
tenta aplacar os nervos vendo um filme inútil. Eles certamente nunca se metem
em discussões dolorosas. Sabem o que fazer deles mesmos e do seu amor. Eles têm
as respostas. As criaturas esquisitas somos eu, você e os nossos parceiros.
Eles, os outros, são simples e felizes. Gente bem resolvida.
Os sentimentos são o nosso principal problema, claramente.
Estamos encharcados deles. Sentimentos de toda espécie, misturados. Você olha
para aquela pessoa que abriu a porta e eles afloram, conturbados. Quanta
aflição não esconde um abraço? A gente então conversa, e a confusão reflui. A
gente espanta o assombro com a nossa voz e o nosso riso. A trivialidade nos
resgata como um bote salva vidas. Nos olhos da mulher que a gente ama há uma
praia tranquila onde a gente ancora – até que o mar no interior dela se agite e
a paz efêmera se perca. De novo.
Gostaríamos que não fosse assim, claro. Preferiríamos ser
gente simples, composta, direta. Em vez de todas as memórias dolorosas que
trazemos conosco, paz. Em vez da confusão de planos e aspirações, clareza. Nada
de turbulência submersa, nenhuma recordação inconfessável, apenas superfície
indevassável e tranquila, como um lago.
Imagine deslizar a mão pelo corpo macio dela sem que a
cabeça esteja tomada por ideias conflitantes. Que genial fazer amor sem que
nele se projete, num rosnado, o velho arsenal de ressentimentos que parece ter
nascido conosco. O sexo então seria puro, biológico, em vez de uma batalha
épica entre o bem e o mal, entre o público e o privado, entre o certo e o
errado que nos habitam. E, depois do prazer, enrolar-se cheio de ternura e de
angústia agridoce naquela criatura que ofega. Sentir-se pai, filho, irmão,
apaixonado, opressor-filho-da-puta, canalha, marido. O que mais?
Os sentimentos não nos largam, indecifráveis. O carro
trafega a 40 km por hora, numa alameda ensolarada, e a lembrança de um certo
olhar pungente quase nos leva às lágrimas. De onde vem essa emoção? Certamente
da música, um samba travesso de Chico Buarque que nos conecta a tudo e a todos,
num momentâneo abraço cósmico pós-eleitoral. Somos todos irmãos, ela me ama, a
morte mora numa toca no fim da eternidade, tudo é lindo.
Sejamos francos: nosso problema não é sexo, é amor.
Encontrá-lo, conquistá-lo, torná-lo parte da nossa vida e, ao final, talvez,
detestá-lo. Nosso problema é preservar esse amor em meio à tempestade de
trovões dos nossos sentimentos. Cuidar para que o fascínio físico dos primeiros
dias não se perca, evitar que a confiança que vem depois não nos cegue de
tédio. Nossa tarefa, gigantesca, é fazer com prazer – e com o mínimo de
sanidade – as coisas que se fazem antes e depois de trepar. A pessoa que fica
ao nosso lado nesse intervalo é nosso maior problema, e talvez a única solução.