Se tem uma coisa que me emociona é ver
no domingo um pai separado almoçar com o filho
Para quem viaja sozinho, as refeições podem ser um problema. Não me sinto à vontade quando entro desacompanhado num restaurante, nem mesmo num restaurante de hotel. Embora admire e inveje gastrônomos solitários, fico sem graça que me olhem comer quando estou só. No filme “O discreto charme da burguesia”, o diretor Luis Buñuel mostra pessoas que se reúnem à mesa para defecar juntas e depois se retiram para cubículos individuais, onde podem fazer suas refeições com privacidade.
Sushi bar
Se tenho de comer sozinho, prefiro o balcão de um sushi bar. Ali posso folhear um livro enquanto mastigo e contemplar peixes mortos sem que me tomem por um excêntrico. Posso também consultar o sushiman sobre a procedência das ovas de ouriço e até mesmo puxar um papo — depois do segundo saquê — com o vizinho de balcão. Mas há situações e cidades em que não é possível encontrar um restaurante japonês. Nesses casos a melhor opção é uma churrascaria rodízio, onde o assédio contínuo dos garçons não deixa ninguém se sentir sozinho.
A necessidade é a mãe da invenção
A origem do rodízio de carnes, ou espeto corrido, é controversa. Uma das teorias afirma que nasceu num restaurante de beira de estrada em Santa Catarina ou no Paraná, nos idos de 1960, no dia em que o dono do estabelecimento percebeu que as carnes que assavam na cozinha não ficariam prontas a tempo de suprir as demandas dos caminhoneiros famintos que lotavam a casa. A solução encontrada foi retirar do braseiro os espetos com as carnes que já estavam no ponto de cozimento e pedir aos garçons que fatiassem igualitariamente as peças pelas mesas antes que caminhoneiros enfurecidos se insurgissem.
Observatório
Encontro-me agora numa dessas churrascarias e observo a movimentação por trás da barreira formada por garçons que deslizam sobre a capa de gordura que reveste o chão. Aproveito para aprender um pouco mais sobre as naturezas humana e bovina. A humana certamente mais dura e complexa, a bovina aparentemente mais macia e saborosa. Vejo chegar um homem de 40 anos acompanhado de um menino de 8. Um pai e um filho, suponho.
Angústia
Pai e filho sentam-se frente a frente numa mesa próxima de onde estou. O homem faz os pedidos de bebidas, um refrigerante para o filho e uma meia garrafa de vinho tinto para si. Enquanto garçons distribuem guarnições pela mesa, pai e filho permanecem calados, como se não houvesse intimidade entre eles. Imagino tratar-se de um filho único de pais separados em seu fim de semana com o pai. Quando pai e filho não vivem juntos há uma cerimônia específica entre eles. Quase nunca se observa o mesmo em relação a mães separadas, pois na maioria das vezes os filhos permanecem vivendo com a mãe depois da separação, e a intimidade não se perde. Pai e filho à minha frente estão sem assunto. Essa é uma daquelas situações que só um pai separado pode experimentar. Ser pai também pode significar angustiar-se numa churrascaria.
Distância
Pai e filho começam a comer em silêncio, como se além do cheiro de carne assada, ressentimento pairasse no ar. Talvez o garoto esteja ali a contragosto. Talvez o pai sinta-se culpado por não poder conviver mais com o filho. Num rodízio o ritmo da refeição é frenético. Nos rápidos intervalos entre uma picanha e uma alcatra, ainda calados, cada um pega seu celular. O filho se entretém com um joguinho, enquanto o pai, contrito, lê e-mails. A distância entre os dois é palpável como um deserto. Passado um tempo, o pai dá um gole do vinho, larga seu iPhone e começa a observar o filho, que continua atento ao seu próprio celular. É um momento de suspense. Então o homem pergunta alguma coisa ao garoto, demonstrando interesse pelo que ele está fazendo. O menino em resposta mostra seu aparelho, explicando como funciona o joguinho. Depois de mais uma rodada de carnes, a camada de melancolia que envolve os dois começa a se desfazer. Os celulares repousam sobre a mesa, e pai e filho finalmente conseguem conversar.
O deserto
Se tem uma coisa que me emociona é ver no domingo um pai separado almoçar com o filho numa churrascaria. Principalmente se já dei cabo de quase uma garrafa de vinho, como é o caso. Lembro de “Paris, Texas”, filme de Wim Wenders que conta a história de um pai que tenta recuperar o diálogo com o filho pequeno, mais ou menos da idade do menino que vejo à minha frente. No filme, antes de reencontrar o filho — e acertar contas com o passado —, o pai vaga pelo deserto ao som de “Dark was the night, cold was the ground”, o trágico blues instrumental de Blind Willie Johnson.