Na gaveta da minha mesa de cabeceira há dois filmes de Frank Capra, uma fotografia da lua de mel em Veneza, um desenho cheio de borrões de guache com a inscrição “Mãe, eu te amo”, um disco de Billy Paul e as “Memórias de Emília”, de Monteiro Lobato. Esse conjunto de objetos compõem minha pequena coleção de salvaguardas para os dias sombrios, aqueles em que a tristeza encontra seu caminho através de um coração poroso para se instalar na córnea como um filtro sépia de Photoshop.
Talvez seja o outono, esta estação de meios-tons em que a melancolia espreita o quarto por detrás das cortinas. Vasculho a gaveta.
A lua de mel já é uma foto desbotada e as peripécias de Emília não me divertem mais como antes. Os filmes de Capra, de tantas vezes vistos, perderam o condão de ensinar que a felicidade não se compra e que da vida nada se leva. O amor de um filho que saiu de casa, reparei, tinge a alma com tonalidades nostálgicas. Ver o desenho da criança que começava a ensaiar as sílabas abre uma comporta de lembranças de mochila e lancheira, porta de escola e algazarra de recreio. Aperta o coração.
Talvez tenha chegado a hora de remontar o velho acervo de talismãs antimelancolia como faziam os antigos.
Se você já foi a Florença, na Itália, e visitou a Galeria dos Ofícios, deve ter se maravilhado com duas obras-primas de Botticelli: o “Nascimento de Vênus” e “Primavera”. Contam que um dos Médici, senhores da cidade, viveu afundado em profunda tristeza até que alguém teve a ideia de encomendar as duas pinturas para que o jovem se distraísse em sua contemplação. Os neoplatonistas de então achavam que admirar as sublimes possibilidades da arte elevavam o espírito dos humanos até o Criador para, assim, alcançar a verdadeira alegria. Não tenho informações sobre a cura da depressão do pequeno príncipe. Mas olhar as belas figuras deve ter sido um poderoso antídoto para as aulas maquiavélicas sobre como manter e ampliar os negócios e o poder da família. Pelo menos é esta a fantasia que inventei sem ter a menor ideia se Maquiavel e o jovem fidalgo foram contemporâneos .
Tudo o que é bom e belo pode nos levantar a alturas maiores que a da mediocridade habitual dos dias, esse espaçotempo que é onde, afinal de contas, acontece a vida da gente. Mas Vênus, Afrodite ou as três Graças, por si só, não me dizem grande coisa. Quando fecho os olhos para evocar uma imagem boa e bonita, me vêm uma praia na Bahia, o Corcovado num final de tarde, o contorno da Serra do Mar visto de uma varanda no litoral paulista. O que faz grudar uma imagem no mural das lembranças deve ser o afeto vivido no instante de seu registro, de modo que o estoque se apresenta à mente mais como um slide show fotográfico do que como um catálogo de museu.
Li em algum lugar que Johann Sebastian Bach, muito preocupado com a depressão de sua mulher, dedicou a ela um caderno com músicas compostas para afastar a tristeza. Entre elas há um célebre minueto, desses que fazem a gente marcar o ritmo com a cabeça tão logo começa a ouvi-lo.
Que presente gentil. Naquele tempo estava em voga uma certa Teoria dos Afetos, em que estudiosos preconizavam determinados padrões tonais e harmônicos para que as composições musicais ganhassem o efeito de produzir bem-estar no ouvinte. Não se sabia bem, então, se melancolia era resultado do desconforto da alma ou do fígado, das inquietações filosóficas dos muito sensíveis ou do mau funcionamento dos fluidos internos. O que se descobriu é que a boa música acalmava os inquietos.
Anna Magdalena guardou o caderno cheio de preciosidades com a anotação do marido na capa: Antimelancolia. O fac-símile do volume se vê facilmente pela internet, o que é mesmo formidável. Não bastasse a música genial, Bach ainda ofereceu à humanidade a fórmula mais requintada de antidepressivo jamais inventada.
Os talismãs antimelancolia que se ganham de presente são os mais eficazes, acredito eu. Por isso este que restou, o CD Billy Paul, está sendo catalogado como item número um do acervo a ser inaugurado. Foi um presente do meu filho, em homenagem à lembrança de um acontecido delicioso, muitos anos atrás, quando ele entrou no meu quarto enrolado numa tolha, cheio de animação, e perguntando: “Conhece essa música?”. ( Ele tinha o costume de tomar banho com o som nas alturas para desespero dos vizinhos.)
Puxa vida, eu já dançava essa música quando tinha a sua idade, garoto! Ele duvidou, claro, e eu comecei a cantar.
Ele se empolgou e começou a dançar. E então fizemos uma pequena festa no corredor.
Tãranran-tã-tã-tã. / Tãranran-tã-tã-tã / It’s a little be funny, Lord/ this feeling inside...
Vou ouvir isso já.