Tenho
corrido tanto neste início de século, que mal tenho tido tempo de
aproveitar a chegada do verão - mas ele chegou, finalmente, e trouxe
as mudanças de espírito que estávamos aguardando desde o início
de dezembro. Chegou meio inesperado, meio molhado, mas ainda assim
merecia ter sido melhor recebido, reconheço. Mas a vida vai
empurrando a gente pra lá e pra cá, um passo desajeitado aqui, um
pisão no pé ali, e a gente sem se dar conta de que o céu já está
se tingindo de outra cor.
Dia
desses, entretanto, nem sei mais porquê, cheguei na varanda e me
permiti ficar na contemplação da vida que estava passando ali,
embaixo da minha janela, numa tarde de janeiro. E que tarde beijava a
lagoa, que grande iluminador, esse! - eu pensei comigo mesmo. Uma luz
perfeita, de um amarelo vibrante, uma vontade de ficar debruçado e
admirado com aquilo tudo, sem nada que quebrasse o mágico daquele
momento.
Uma brisa que se podia sentir mergulhando no corpo e até
ver no encrespado do espelho d’água. Fiquei lembrando de uma frase
de Virginia Woolf, acho que está em Mrs Dalloway e ela se refere à
beleza da manhã - como para crianças numa praia! - acho que é
isso, e eu pensei que aquela tarde era o cenário ideal para crianças
numa praia e todos os seus castelos de areia. E celebrei, ali, em
silêncio, o meu festival do estio, acendendo o coração e enchendo
as narinas com o cheiro que vinha pelo ar. O meu festival do estio.
Cheio de entidades tropicais, eu ia pensando, sereias e índios,
sacis e caiporas. Dias antes, com alguns amigos, eu tinha assistido a
um vídeo de um balé irlandês e ficamos comentando sobre a antiga
religião celta. De repente, Mary começou a contar a história de
uma raça de fadas, as pixies, na verdade humanóides alados, que
habitavam as florestas da Irlanda.
Daí que, ali, pendurado na
sacada, lembrei da história e fiquei inventado as minhas entidades,
umas fadas brasileiras, cheias de gingado no bater de asas,
despudoradas no vôo, que eu fui soltando pelo céu da minha
imaginação.
O
verão tira as pessoas de casa e coloca a cidade num movimento
gracioso. A volta da Lagoa ia ondulando com o tanto de gente que
passeava e corria e pedalava, celebrando a temporada. É bom olhar
pra gente. Tem gente que gosta de observar os pássaros. Eu gosto de
observar gente.
Fico inventando histórias e acontecimentos, partindo
de alguém que acabou de cruzar o meu campo de visão. As histórias
vão se misturando e trazendo outras e, no final, a cidade é cheia
de personagens, porque é isso que elas são, na verdade.
A
brisa ganhou corpo e mexeu com tudo lá embaixo. Era só uma ameaça
de vento, mas não ia se concretizar. Ela soprou a calçada e um
bando de folhetos fez um vôo rasteiro, para aterrisar mais adiante.
Devem ser folhetos de cartomantes e adivinhos, eu pensei, porque eles
proliferam nesta época do ano.
Trago
a pessoa amada em três dias.
Eu
adoro isso. Trago a pessoa amada em três dias.
Cada
vez que alguém me entrega um desses panfletos, eu me imagino sentado
numa cadeira, na frente da clássica cigana da bola de cristal.
Sempre reluto, antes de atirar o papel fora. Sabe Deus quando é que
vai se precisar de uma força extra!, eu penso, tentando gravar o
número do telefone. E tudo porque me fascina essa única frase:
trago a pessoa amada em três dias.
O que
faríamos, se soubéssemos, com certeza, que dali a três dias ia
chegar o amor que se foi? Não é tão simples assim, se a gente
pensar bem. Se o amor chegasse com hora marcada, na estação, como
alguém querido que se ausentou por um tempo, esses três dias antes
do amor iam ser inacreditáveis!
Afinal, esta volta com hora marcada
exige um encontro impecável.
Sarita
chegou sem se anunciar, pousou o queixo no meu ombro, leu o início
da crônica e disse que estava sem pé nem cabeça. Depois, concluiu
que não esperaria os três dias estipulados para a volta da pessoa
amada.
- Não
esperaria nem um! Nem um minuto! Se não esbarrasse com o cachorro na
porta da cartomante, dava a visita por perdida!
E
concluiu, com uma careta de desprezo:
- Quer
saber do que mais? Estou chegando à conclusão de que amor é coisa
pra desocupado!
Saí
do computador e abandonei a crônica. Arrastei Sarita pra varanda,
achando que a visão da cidade maravilhosa à noite, acalmaria aquele
coração, mas ela não me deu trégua. Praticamente exigiu que eu
mudasse o rumo da crônica e eu concordei, tentando não alongar a
conversação. De repente, ela parou de falar.
A
noite estava linda. A lua, nos céus, era uma lua árabe. A tarde
generosamente tinha ofertado sua perfeição à noite. Havia uns
pássaros voando na lagoa. Volta e meia um planava sob a luz e era
como se ele brotasse do nada, uma mancha de branco que estendia as
asas, uma, duas vezes, até desaparecer de novo na escuridão.
O que
é aquilo? – Sarita espichou o pescoço, abruptamente.
São
pixies – eu disse, sem pensar.
Ela me
olhou com um ar de interrogação e desenhou a palavra, puxando o
queixo pra baixo: pi – xies?
Eu não
respondi.