A voz parece bem familiar. Ela vem se aproximando enquanto
tira os óculos . A reconheço imediatamente. Tínhamos tido uma relação de vários
anos, intensa, feliz, mas com um final mal resolvido. Vou chamá-la, aqui,
ficcionalmente, de Clara.
Quando a reconheci fiquei branco e sem saber o que falar.
Ela sorrindo quase gargalhando e eu ali parado, com cara de estátua.
Clara. Inacreditável. Era a Clara. As últimas vezes que a
tinha visto haviam sido em fotos no Facebook. Ela estava mais linda que nas
fotos. Eu não a via já tinha mais de três anos e meio com certeza. Talvez
quatro anos. Ela estava ainda mais bonita. E com o mesmo sorriso doce:
- Oi! Fala alguma coisa...Disse ainda rindo.
- Oi. Tudo bem? - respondi demonstrando ainda mais meu
estado de choque. Eu estava preparado para tudo, menos pra encontrá-la.
Eu estava ali para comprar uma cortina para a casa que
acabara de me mudar. Estava recomeçando a vida. Ela nem sabia que minha vida
anterior havia acabado, muito menos que havia outra recomeçando.
Há 3 anos quase havíamos voltado, sem sequer havermo-nos
visto pessoalmente. Ela estava na Europa e, por acaso, voltamos a nos falar
pelo Skype. Daí pra paixão voltar foi só uma questão de poucas conversas e
muitas lembranças. E, pela internet mesmo, resolvemos que ela terminaria o
quase casamento dela, voltaria ao Brasil e a gente voltaria nossa relação.
Havíamos nos apaixonado de novo, dessa vez via web. Conexão total. Mas coisas
do destino nos levaram para outras histórias e isso nunca aconteceu. E ainda gerou
uma briga que estava se encerrando naquele momento, anos depois.
E, ali estava eu. Parado sem conseguir realizar a presença
dela, na minha frente, sorrindo como sempre e linda como nunca.
Ela perguntou o que eu fazia ali, eu disse e ela foi comigo
comprar a tal cortina. Ajudou a escolher e enquanto estávamos na fila dos
caixas, lotadas no final do ano, começamos finalmente uma conversa. Ela contou
que estava casada há dois anos e com um filho de um. Claro que mostrou a foto.
Lindo o bebezinho de olhos iguais aos delas. Quando saímos da loja ela me
perguntou se poderíamos conversar um pouco. Ela nunca fora de dar muitas
voltas, e desde a última vez que nos falamos há três anos, muitas coisas
ficaram sem explicação.
Sugeriu que fossemos até o carro dela e até a praia.
Eu estava tenso, emocionado e assustado. Assim que saímos do
estacionamento, ela começou sem nenhum rodeio a perguntar tudo que havia ficado
sem explicação. Ela perguntava, mas não me dava tempo de responder. Ainda bem,
porque eu não teria as respostas. Ela queria mesmo era falar.
Estava nervosa, emocionada e com imensa necessidade de
desabafar. Aquilo devia estar engasgado há muito tempo. Decidi apenas ouvir com
o máximo de atenção e carinho. Ela mesmo havia me ensinado a compreender me
compreendendo.
Ela parou o carro numa das entradas da praia da macumba e
começou a falar de como tinha se dado para mim de todas as formas possíveis,
como amiga, mulher, cúmplice, companheira, incentivadora, sempre me passando
confiança e tudo mais que um ser humano pode fazer de bom e de bem por outro.
Na verdade ela não queria explicação alguma. Ela não estava cobrando nada. Só
queria me falar tudo que sentira. Ela estava ali, chorando e me abraçando como
se quisesse me esmagar contra si. Esmagar um sentimento que a fizera sofrer.
É claro que quis tudo com ela naquela hora. Voltar a ser
casado, nunca mais parar de fazer carinho, proteger e abraçar aquela mulher que
sempre me deu tanto. E aí, percebi que o que eu sentia por ela era realmente
amor. Muito amor. Lembrei do facebook, do filho que ela sempre quis e eu não,
da vida tranquila e feliz que a cadeirinha no banco de trás denunciava.
Naquele momento, a desejei mais que a qualquer mulher no
mundo e uma enorme atração que me invadiu por completo ao vê-la absolutamente
linda me amassando contra seu peito e sentindo sua boca a milímetros da minha,
esperando pelo beijo que eu estava alucinado para que acontecesse. Eu nunca precisei provar tanto meu amor por
alguém quanto naquele instante decisivo. Eu não podia tirar dela a felicidade
que ela conquistara depois do sofrimento que eu a impusera, desde que eu a
deixara me esperando há três anos comunicando-a sem maiores explicações,
através de um telefonema, quase lacônico, de que estava com outra mulher.
Ou eu saía do carro imediatamente ou a abraçava para sempre.
Foi então que percebi todo o bem que ela havia me feito. Era maior do que o que
eu imaginava . Percebi que todos os comportamentos que tenho capacidade de
dedicar a quem gosto, toda a disponibilidade para fazer qualquer coisa que
esteja ao meu alcance para fazer quem está comigo feliz, eu aprendi com ela.
Ela havia me ensinado a amar bonito me amando bonito.
Meu pensamento voltou para a realidade do que ocorria
naquele carro. A amei mais ainda. Meu coração parecia que ia explodir de tanto
carinho, ternura, amor e admiração por aquela mulher. E percebi porque nunca
tinha entendido porque o motivo de havê-la deixado. Eu a amava mais do que
podia. Na época em que havíamos sido casados, eu simplesmente não soube
administrar. Ela me amava tanto e tão completamente que eu nem pensava no que
sentia. Era um ingênuo, um egocêntrico que era tão amado que nem precisava
pensar no que sentia. Que pouco demonstrava o quanto a amava.
Eu havia mudado muito, e, hoje, era capaz de dar tanto amor
quanto receber. Eu havia descoberto o prazer de amar bonito e de fazer a amada
se sentir a mulher mais desejada de todas. Graças a ela.
Mas, a cadeirinha de bebê no banco de trás do carro importado,
do ano e estalando de novo me trouxeram rapidamente para a realidade: se não
houvesse aquele encontro ela continuaria a ser feliz e não estaria chorando
como estava. Ser mãe sempre fora seu maior desejo e ela tinha muita dificuldade
para engravidar. Em cada detalhe daquele carro havia algo que eu reconhecia
dela. Ela tinha tudo que merecia, e eu não podia colocar isso em risco.
Eu havia tido minha chance de ser feliz. Ela havia sido
total e completamente minha mulher, tanto, que mais seria impossível. E ela
havia sido mais.
Espero nunca me arrepender do que fiz. Dei um longo e
carinhoso beijo naquela linda boca macia, choramos abraçados por um longo tempo
e ninguém falou. Quando sai do carro desejei o mais patético feliz Natal da
minha vida.
Ela ficou parada me olhando sair andando pela frente do
carro. Soluçávamos tanto, que dava para perceber os movimenos corporais
característicos dos choros convulsivos. Minhas lágrimas quase não me deixavam
ver as delas. Olhei para trás algumas vezes, até que ela arrancou, passou por
mim e foi embora.
Talvez ela nunca saiba o quanto eu chorei de saudade aquela
e outras noites, o quanto lembrei de tudo que ela havia feito por mim e de como
éramos almas gêmeas tão felizes que, quando estão juntas, parece que o corpo de
um se encaixava no outro como peça de quebra-cabeça. Naquele momento, percebi como ela havia me modificado para
melhor, em minha alma.
Fiquei um longo tempo esperando o ônibus, segurando aquela
sacola. Pensando em quanto bem ela havia me feito e esperando ter feito, ali, o
melhor que poderia, por alguém tão absolutamente maravilhosa quanto Clara.