João é uma criança do século XXI. Tem dois pais que trabalham muito, segundo suas palavras “incontáveis horas ao dia” para pagar a casa onde moram, os carros nos quais se locomovem e os poucos dias de férias que tiram por ano. Também diz que não se importaria de ter uma sala menor, um carro que fosse um pouco mais lento e sem banco de couro, e um futuro mais incerto, em troca de passar um pouco mais de tempo com seus pais.
Mas não com seus pais de agora – cansados, estressados, preocupados e inacessíveis – e sim com seus pais de antes: atenciosos, dispostos, risonhos, carinhosos e coerentes. Ele sente muita falta deles, mas não tem nem ideia de como dizer isso a eles. Além disso, João observou que os adultos, não só seus pais, também não expressam o que sentem. Ele suspeita de que existe uma conexão entre o mundo emocional e as palavras, mas ninguém lhe ensinou exatamente como isso funciona. São todas suspeitas nas quais ele se sente inseguro.
“A infância nunca dura. Mas todo mundo merece uma.”
-Wendy Dale-
João é uma criança muito ocupada
João também é uma criança que não brinca, ou pelo menos que não brinca por brincar, e sim com outra intenção muito além de se divertir e de ter bons momentos. Desde que a sua irmã nasceu, seus pais passaram a considerá-lo grande e lhe delegam responsabilidades, mesmo sendo pequeno a julgar pelo tipo de preocupação que manifesta. A única coisa que isto produz é ainda mais insegurança, mas ele também não sabe como dizer isto a eles.
Além disso, o pequeno protagonista deste artigo não tem um horário livre no dia, a pergunta do que ele quer e o que não quer fazer está restrita aos finais de semana, nos quais, por sorte, a mãe trabalha. São os finais de semana que passa com seus avós. Eles pretendem compensar em dois dias toda a liberdade que os seus pais lhe restringem. Embora o pequeno não tenha lhes dito isto, eles têm a sabedoria que a experiência dá e suspeitam de como ele se sente; contudo, estas mudanças tão bruscas também confundem o João.
Durante a semana, as manhãs e as tardes são repletas de cores. De fato, este ano teve que repetir a cor para mais de uma atividade, porque no seu estojo não havia uma gama de cores suficientemente ampla para diferenciar toda a sua agenda. Então, o inglês da escola, este ano, tem a mesma cor do inglês das suas aulas particulares e a mesma coisa acontece com música e o conservatório musical, ou educação física e a escolinha de futebol. Inclusive este ano teve que usar o amarelo, que ele gosta ainda menos do que chutar uma bola, para as aulas de chinês.
João já não reclama do futebol, pelo menos não de forma direta: porque não sabe fazê-lo como alguém mais velho e não quer fazê-lo como uma criança, mas principalmente porque não quer decepcionar seu pai. Já sente que o decepciona quando não joga direito ou no dia em que é sua vez de se sentar na reserva, não quer nem imaginar como pode vir a se sentir se um dia dissesse a ele que seus sonhos são outros.
“Uma das melhores coisas que podem acontecer com você
na vida é ter uma infância feliz.”
-Agatha Christie-
João é uma criança silenciada
João adora ler. Lembra com carinho das histórias que seu pai lia para ele quando pequeno. Algumas ele lia, outras inventava. Gostava especialmente das inventadas porque seu pai o conhecia muito bem e sabia exatamente o que ele gostaria que o menino intrépido que acabava de escapar pela janela fizesse. Nessa cumplicidade, agora perdida, acabava dormindo com um sorriso.
Além disso, no dia seguinte João fazia em segredo o que agora podemos revelar: escrevia as histórias em um papel porque queria que o seu melhor amigo também as aproveitasse. Era o seu jeito, entre muitos outros, de tentar compensar a tristeza que via nos seus olhos por não ter conhecido o seu próprio pai. Também o fazia por outro motivo: um dos seus vizinhos tinha Alzheimer e João tinha sido testemunha de como perdia a sua memória.
Ele não queria esquecer algumas histórias que agora abraçava, enquanto sentia nas suas palavras que a sua infância pouco a pouco estava indo embora e que, ao contrário daquele menino fujão e aventureiro, nunca voltaria.
João sabe muito mais línguas do que muitas crianças da sua idade, é bom no piano, domina as equações enquanto seus colegas ainda brigam com os números negativos, e sabe realizar todos os cuidados mínimos que uma irmã pequena precisa. João também é um menino triste e, além disso, é consciente de que está triste porque um dia foi feliz, foi imensamente feliz. Uma felicidade que seus pais sacrificaram por um futuro que ninguém sabe se algum dia chegará. Vale a pena?
A mente é maravilhosa
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