Em 1960, exilado no México, o grande diretor de cinema Luis Buñuel recebeu um convite oficial do ministro da Cultura da Espanha, ainda sob o jugo da ditadura de Franco. A esta altura, o mestre já era considerado um dos maiores diretores de cinema do mundo e Franco não via com bons olhos o exílio daquele que era um dos mais talentosos filhos da terra. O convite era mais do que generoso: Buñuel podia regressar para realizar qualquer filme que desejasse, reencontrando suas raízes e o olhar de seu povo. O convite foi aceito (acredito que não sem, antes, profundas reflexões) e Buñuel filmou "Viridiana", uma de suas obras-primas.
O filme, é claro, já tinha sido pensado e era peça importante no processo de busca do artista, que lutava para libertar-se da rígida formação católica que ele abominava. Um violento libelo contra a Igreja Católica que apoiava a ditadura franquista, "Viridiana" ainda hoje é um filme impactante. Buñuel, sabedor de que aquela história não teria um final feliz, escapou para Paris, assim que a última cena foi filmada, levando com ele os negativos e deixando para trás um irado ditador, que demitiu o ministro e tentou impedir a exibição do filme no Festival de Cannes, de onde saiu com a Palma de Ouro. O filme foi proibido na Espanha e o Vaticano o condenou violentamente.
Quase uma década depois do escândalo, uma cópia surgiu no cine Itamar, num daqueles programas duplos que juntavam os gladiadores à nouvelle vague sem nenhum pudor. Como eu vivia naquele cinema e já era um rapazinho, o porteiro fez vista grossa para a censura e foi assim que vi Silvia Pinal dar vida à noviça de Buñuel.
Há muitos anos não vejo o filme e não sei se continua tão impactante quanto foi na época, mas acredito que sim. "Viridiana" é o sagrado coração exposto em sua crueza. Fiquei anos com imagens do filme na cabeça e Silvia Pinal entrou para a galeria das minhas divas. Agora mesmo, enquanto escrevo a crônica, num fim de tarde incendiado, lembro da sensação que tive ao assisti-lo nas cadeiras do Itamar e o quadro vivo dos mendigos recriando a Santa Ceia ainda está guardado em algum lugar do labirinto.
Há muitos anos não vejo o filme e não sei se continua tão impactante quanto foi na época, mas acredito que sim. "Viridiana" é o sagrado coração exposto em sua crueza. Fiquei anos com imagens do filme na cabeça e Silvia Pinal entrou para a galeria das minhas divas. Agora mesmo, enquanto escrevo a crônica, num fim de tarde incendiado, lembro da sensação que tive ao assisti-lo nas cadeiras do Itamar e o quadro vivo dos mendigos recriando a Santa Ceia ainda está guardado em algum lugar do labirinto.
Um dia, eu morava em Copacabana, e estava olhando a tarde morrendo no mar, quando o telefone tocou. A voz bonita, num espanhol cantado, anunciou-se como Silvia Pinal. Demorei um tempo até entender do que se tratava. Ela tinha ouvido falar do sucesso de "A Partilha" em Buenos Aires e queria detalhes sobre a obra. Ficou um pouco desanimada quando soube que não havia exatamente uma protagonista, já que a peça falava de quatro irmãs que dividiam seu passado e a herança da mãe falecida. Não foi uma conversa longa.
Eu não consegui lhe dizer que sua Viridiana andava comigo, nas noites em que eu não conseguia dormir. Não disse que seu rosto estava no panteão das deusas que eu vi menino na tela prateada. Foi uma conversa formal e objetiva. Ela disse que ia ler, eu me despedi.
Eu não consegui lhe dizer que sua Viridiana andava comigo, nas noites em que eu não conseguia dormir. Não disse que seu rosto estava no panteão das deusas que eu vi menino na tela prateada. Foi uma conversa formal e objetiva. Ela disse que ia ler, eu me despedi.
Ainda fiquei um tempo com o telefone nas mãos, lembrando do saguão do velho cinema e de minha avó, que nos levantava pela cintura, para beijar os pés do senhor morto. Quando voltei a olhar o mar, a noite já o tinha engolido. Isso foi tudo.
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