Como me ensinou meu pai:
pior do que um comunista é um anticomunista.
Tinha tido a impressão de que este jornal quis tirar onda com a minha cara. No domingo passado, ao anunciar, na primeira página, o que o leitor encontraria aqui na coluna, os editores disseram que eu teria “adoração” por Marcelo Freixo. Achei estranho. Sempre essas chamadas vêm com ideias expressas no meu texto. Por que dessa vez houve um distanciamento? Ali se dizia, literalmente, que eu estava entre a lucidez de Fernanda Torres e a adoração pelo pré-candidato. Será que dei mesmo lugar a que se escrevesse isso? — me perguntei. E pensei: há algo errado. Nada em meu texto permitia que se usasse a palavra “adoração”. E esta palavra desqualificava quaisquer observações objetivas que porventura eu tentasse desenvolver.
Minha adesão à ideia de uma candidatura de Freixo à Prefeitura do Rio é explicitada, inclusive com a afirmação de que sou “100% Freixo”. Todas as vezes em que, ao se avizinharem eleições, senti que um candidato representaria um movimento forte no sentido do encaminhamento político que vislumbro para o Brasil, declarei meu voto sem margem para dúvidas. Ao contrário do que querem fazer crer meus maus imitadores, não vivo dizendo “ou não”. Tal definição de posições tão específicas não podia ser tachada de “adoração” por essa ou aquela personalidade pública. Ao apoiar uma possível candidatura tão desamparada pelo dinheiro, pelos esquemas existentes, pelos donos do poder, não pude deixar de achar suspeita uma tirada como essa do GLOBO. Cheguei mesmo a formular que nenhum jornalista poderia fingir para si mesmo que o uso da palavra “adoração” não teria, no contexto, o papel destrutivo que detectei. Mas me esqueci de outra verdade sobre a vida diária dos jornais: a correria, que pode levar a mal-entendidos. Não é preciso ser um paranoico clássico para atribuir intencionalidade a coisas que chegam às rotativas por acidente ou falta de tempo. Relendo o que já tinha escrito, me vi (depois de alertado por amigos e por jornalistas em quem não tenho por que não confiar) como um articulista algo mimado e temperamental. Na verdade, a frase inicial me veio junto com a lembrança de Paulo Francis escrevendo na “Folha” em resposta ao então ombudsman daquele jornal. (Não reli tal texto na publicação de uma nova antologia de Francis: como disse, ainda não li nenhuma dessas coletâneas de coisas dele, prometo fazê-lo uma hora dessas. A frase — que era, mais ou menos, “Tenho a impressão de que Caio Tulio passou a mão na minha cabeça” — reveio de memória.) E, embora aquele jornalista tenha me influenciado desde a adolescência — e eu não deixe de perceber sua presença aqui em meus escritos —, eu acabei por considerá-lo um autor mimado e dado a chiliques, aspecto que não desejo emular.
Eu teria declarado essa intenção de voto com a mesma firmeza de qualquer maneira, mas meu artigo nasceu da leitura do texto de Fernanda Torres na “Folha de S. Paulo”. Sem este, talvez eu apenas informasse o leitor sobre minha decisão. Mas Nanda questionava a viabilidade de um candidato que supostamente despreza empresários. Como explicou o próprio Freixo no “Roda Viva”, não se trata de desprezar os empresários, mas sim de rechaçar o modo viciado como vêm se dando as relações entre políticos e o poder econômico. Ele crê que isso pode e deve mudar, enquanto não chega o financiamento público das campanhas. Dizem que ele crê em muitas coisas incríveis. Mas achavam incrível a criação de uma CPI das milícias e no entanto ela foi instaurada e puniu gente. Pergunta: alguém acha oportuno uma candidatura de oposição, quando o alinhamento entre prefeitura, estado e União funciona e quando a polícia entra em favelas para ficar em vez de invadir e abandonar? Resposta: Freixo é uma espécie de oposição que ajuda o que há de bom no governante a se livrar das arapucas em que se meteu. Além de ele não anunciar o desarme do que foi conseguido, a cidade capta o valor de um gesto que indica aumento de saúde social.
XXX
Contei no domingo passado que leio o Ex-Blog de Cesar Maia com proveito. Pois bem, esta semana li lá uma nota intitulada “Uma sugestão para a Comissão da Verdade: ver o filme ‘Cidadão Boilesen’”. Quero ver esse filme. A descrição que Maia oferece causa forte impressão. Quando estive preso, ouvi, no quartel da PE da Vila Militar, gritos de dor de torturados. O fato de me terem dito ali que provalvelmente se tratava de presos comuns, bandidos da Zona Norte, fez-me pensar na brutalidade da sociedade brasileira. Sempre penso que a Comissão da Verdade deveria desnudar o mundo da tortura, que tomou ares quase oficiais durante o governo militar, mas que é prática comum nas prisões e delegacias do país. Esse filme que Maia destaca conta como empresários e banqueiros financiaram a Oban (Operação Bandeirante, o centro de informações da ditadura, que torturava), sendo que Boilesen foi o mais entusiasmado deles: gostava de assistir pessoalmente às sessões de maus-tratos. Era um anticomunista. Como me ensinou meu pai: pior do que um comunista é um anticomunista.