“O prazer pode
apoiar-se sobre a ilusão,
mas a felicidade repousa sobre a realidade.” (Chamfort)
Dia desses me atraquei com um livro atordoante,
indicado pela amiga Martha Mendonça. Envolvida de corpo e alma numa pós
graduação em literatura, devo confessar que tenho me dedicado muito pouco a
leituras fora do escopo do estudo – especialmente agora, na fase de redação da
monografia. Parecia uma grande transgressão ler, no meio disso tudo, Garota Exemplar, da jornalista americana
Gilliam Flynn – o livro que desbancou em vendas, quem diria, os 50 Tons de
Cinza.
Martha me garantiu que valia à pena. Depois de um breve pit stop numa
pequena livraria – pensando, claro, “eles não devem ter” – rumei para casa na sexta-feira
à noite com a obra malocada na bolsa, como se tivesse cometido um crime.
Iniciei a leitura discretamente, ainda questionando minha decisão, e olhando de
soslaio para meus livros acumulados na cabeceira, traídos, aguardando sua vez.
Resumindo: me afastando momentaneamente de Umberto Eco,
Pierre Levy, Roger Chartier e tantos outros, passei o fim de semana mergulhada
numa história de suspense que grudou em mim feito chiclete. O livro é bem
escrito, dinâmico, competentemente estruturado, tem tudo para ser um romance de
sucesso dos nossos tempos.
Gilliam é ótima, escreve como homem e como mulher
com perfeição e, tirando alguns momentos de ironia tipicamente americana ou de distraída
previsibilidade, criou um belo produto, do início ao fim.
Gostei de vários aspectos do livro, mas o que mais me
interessou foi seu recado insistente e escancarado: a inexistência da Garota
Legal. Esta seria uma abstração dos homens, uma fantasia tosca que nós,
mulheres, numa cumplicidade disfarçada, ajudamos a construir. O livro é quase
um ato de protesto contra esse estereótipo que, de alguma forma, se perpetua –
em uma espécie de conspiração perversa forjada tanto por eles quanto por…nós
mesmas.
Ao longo da narrativa, a personagem se dirige frequentemente às
mulheres leitoras, chamando a atenção para essa invenção, insustentável e
frágil, construída através de um acordo tácito, mundano e superficial de
“sobrevivência” entre homens e mulheres.
Mas, afinal, quem é essa Garota Legal? É a mulher
disposta a quase tudo, com um largo sorriso no rosto – ou no corpo inteiro.
Malha, trabalha, tem uma vida repleta de novidades, gosta de sair à noite,
conta piadas, ama sexo casual a qualquer hora, sempre carrega um livro ótimo na
bolsa (e consegue terminá-lo), está sempre cheirosa e de bom humor.
Como
descrita no livro: brilhante, criativa, gentil, atenciosa, esperta e feliz.
Eternamente jovem, leve, relaxada. Divertida. Não tem ciúmes de seu parceiro –
ele pode sair a hora que quer, voltar do jeito que bem entender e, ainda assim,
ela estará vestindo algo sexy e achando graça naquele comportamento
permanentemente adolescente e tipicamente masculino. De fato, isso a atrai.
A
Garota Legal tem um humor inabalável: não faz cara amarrada, ainda que tenha
ficado horas sendo transferida de atendente em atendente no teleatendimento do
cartão de crédito, não consiga um táxi para uma reunião muito importante ou
perca um avião. Ainda que esteja exausta, a Garota Legal tem sempre a energia
necessária para fazer uma boa massagem nos pés do parceiro quando ele chega
igualmente cansado – e tudo sempre pode evoluir para algo mais…
Homens fantasiam com Garotas Legais e acreditam que
elas existem porque elas fingem que – de fato – existem. Usam a persona até
onde for possível – até que um dia a máscara começa a cansar. Porque é
verdadeiramente exaustivo ser a Garota Legal.
Ao estranharem o humor alterado
de sua Garota Legal, os homens pensam que a relação caiu na rotina – ou que a
Garota começou a envelhecer. Ela que, na verdade, nunca passou de uma ficção. Ela
tentou manter a farsa o quanto pode, para manter seu relacionamento – afinal,
ficar sozinha é um horror.
No mundo de hoje, as solteiras são aberrações da
natureza, malucas que não conseguiram “se arranjar”. Só as sorridentes e
amestradas Garotas Legais se casam, arrumam namorado, fazem maridos entediados
traírem suas esposas – essas, por sua vez, ex-Garotas Legais.
O livro Garota Exemplar é tão bem construído que nos
faz mesmo acreditar que Garotas Legais existem e que, no fundo, no fundo, há
uma gritando pra sair de dentro da gente. Basta querer. Chegamos a sorrir com o
canto da boca, virando as páginas, diante de alguns comportamentos típicos que
já tivemos ou que gostariamos de ter para agradar nossos homens – e, porque
não, a nós mesmas.
Aí vem a segunda parte do livro, entregando o que já era
veladamente esperado: a revelação da Garota Real. Nada parece mais assustador.
Uma garota cheia de nuances variadas, e uma imensa predisposição para as mais
diversas maluquices.
Claro que há extremos no livro, quase caricatos. Mas me
parece importante o seu recado: a importância de não nos tornarmos essa versão
caricata da Garota Ideal, distanciando-nos dos nossos verdadeiros desejos para
agradar não só aos nossos parceiros (ou parceiras) mas ao mundo, de uma maneira
geral. É quando esquecemos o princípio do nosso próprio prazer para tão somente
proporcionar prazer e vencer na batalha dos afetos – tão escassos, no mundo de
hoje.
A má notícia do dia é: a Garota Legal não existe. Ela foi inventada para
preencher expectativas e trafegar no mundo de maneira mais suave. E a boa
notícia é essencialmente a mesma: a Garota Legal não existe.
Porque sua versão
real pode ser muito melhor. Pode ser genuinamente bem-humorada, sexy,
workoholic, ambiciosa, inteligente, perspicaz, ninfomaníaca, cheirosa,
preocupada com a boa forma, devoradora de livros, filmes, teses de mestrado.
Talvez não tudo ao mesmo tempo. Nem o tempo todo. A Garota Real é, do jeito dela, imperfeita e
nunca, jamais, exemplar. Mas é muito mais feliz.