Estava a ler o texto de Adauto Novaes (nosso filósofo sem torre de marfim) sobre a preguiça - tema de seu seminário/livro atual. Na realidade, são estudos sobre a lentidão, neste mundo cada vez mais veloz. E, aí, tive saudades da calma, do princípio, meio e fim, tive saudade das "geladeiras brancas e dos telefones pretos", das manhãs, tardes e noites, separadas pela luz que se coloria do rosa ao negro e se apagava aos poucos, tive saudade das mortiças casas de família, até da infelicidade de antigamente - de novela de rádio -, de lágrimas furtivas, dos casais com olhos sem luz, depois de casamentos esperançosos com buquês arrojados para um futuro que ia morrendo aos poucos.
Estou com saudades de tudo. De mim, inclusive. "Saudades" ou "saudade"? Tenho saudade (s) de meu velho professor de português, magrinho, irritadiço e doce, Luis Vianna Filho, que me bradava: "O senhor não tem acento circunflexo!", apontando meu nome que meu avô árabe registrara "Jabôr". E continuava: "Jabor é o certo. A única palavra dissílaba da língua terminada em "or" que tem circunflexo é "redôr", para diferenciar de "redor, em volta de", pois redôr é o pobre-diabo que fica puxando o sal nas salinas, com um rodo".
Lembrei-me dos miseráveis "redôres" de Cabo Frio, lembrei de minha juventude quando achei, por acaso, uma velha fotografia de jornal, em preto e branco, da passeata dos Cem Mil em 1968 na Cinelândia. No meio da multidão da foto, vi emocionado um pequeno rosto granulado - eu mesmo, ali, sentado no chão, ouvindo os discursos de Vladimir Palmeira e (talvez) de Dirceu -, bonito, cabelo longo, hippie guerreiro.
Tive uma nostalgia do passado até com a recente "reprise" de José Dirceu na mídia como poderoso chefão dos soviéticos que, aliás, aproveitaram os últimos escândalos para reciclar o lixo bolchevista de "controlar a Imprensa". (Eles não desistem). Fiquei nostálgico porque Dirceu era também uma sobrevivência do passado em minha vida. E tive uma bruta saudade da utopia. Sempre critiquei o Dirceu porque ele, do passado em preto e branco, tinha querido invadir o presente com uma subversão regressista, que poderia nos jogar de volta a um tempo morto. Muito mais do que os milhões desviados do "mensalão", critiquei-o ideologicamente, porque ele liderava uma tendência, viva ainda hoje, de se "tomar o Estado", "desapropriando" o dinheiro público pelo "bem do povo". Dirceu caiu por uma tentativa que mais uma vez falhou, em nossa esquerda de trapalhões, como foi em 63 ou em 68, no Congresso de Ibiúna.
Mas, mesmo assim, fiquei com saudade de mim mesmo. Tenho saudade de mim ali, com o rosto cheio de esperança na passeata, achando que mudava a história e que o mundo era fácil de mexer.
Como eu gostaria de explicar aos jovens de hoje o que era a infalível "certeza" daquela época remota, o que era a delícia de viver sentindo-se no "bom caminho", na "linha justa", salvando o futuro. Hoje, ninguém sabe o que era o sentimento de harmonia, de totalidade, em um mundo fragmentado e frio. Hoje, os meninos vivem em galáxias de informações, quando não há mais lugar para "A Verdade".
Os jovens que nascem no grande deserto virtual não sabem que vivíamos num rio que corria para o futuro, em direção a uma felicidade completa, com lógica, com Sentido. Tenho saudade do futuro que hoje se espraia como uma grande enchente suja, sem foz, um deserto sem ponto final. Hoje sabemos que não há mais futuro nem chegada - só caminho.
Tenho saudade do amor da juventude, da minha namorada comunista - nós dois no sofá-cama do "aparelho" clandestino do PCB em Copacabana, o sofá-cama rasgado, com a mola aparecendo, onde nos amávamos antes da reunião da "base" com medo que chegasse o supervisor, um "camarada" com um doce nariz de couve-flor rosado e tristes sapatos pretos com meias brancas, que nos falava, melancólico, do imperialismo norte-americano. Tenho saudades dela, linda, corajosa, no apartamentinho com o cartaz dos girassóis do Van Gogh e uns livros da Academia Soviética, numa prateleira sobre dois tijolos.
Para nós, comunas, até a morte era pequena, como nos ensinava o camarada de nariz rosado: "O marxismo supera a morte, pois uma vez dissolvido no social, o indivíduo perde a ilusão de existir como pessoa. Ele só existe como espécie. E não morre!" E eu, marxista feliz, sonhava com a vida eterna...
Tenho saudade das madrugadas cheias de esperança, as madrugadas políticas, a boemia de esquerda, soldados de uma guerra imaginária. Meu Deus, como eu era importante, como me senti útil quando ajudei um pouco a luta armada, quando levei no meu fusca um casal de feridos sangrando no banco de trás, até um "aparelho", quando o líder da célula pegou o volante e eu fui ao lado, de olhos fechados para não saber onde estávamos - se bem que espreitei pela fresta das pálpebras e vi o casal mancando em direção a um prédio.
Tenho saudades dessa trágica solidariedade, mas tremi nesse dia, pois comecei a entender que não havia apenas um deserto à nossa frente, mas uma avalanche de obstáculos imensos e que íamos acordar de um sonho para um pesadelo. Entendi que éramos fracos demais para moldar a realidade e que a vontade não bastava, pois as coisas comandavam os homens e a vida tem um curso próprio e misterioso. Entendi que ser político e lutar pelo futuro exige vagar e respeito pela insânia do mundo e que a tragédia é parte essencial da vida e que tentar saneá-la pode levar-nos a massacres piores. Entendi que luta política se faz com humildade e que só a democracia é revolucionária no Brasil. Fora isso, é o desastre. Mas, tenho saudade da mistura de poesia com revolução que era nossa vida, tenho saudade desse narcisismo onipotente e inocente, tenho saudade da esperança e da ilusão.