Por
razões que têm a ver com a política e a economia, a divisão do
mundo entre nós e eles tornou-se muito mais profunda que a mera
organização psicológica dos casais. Ela dominou a vida social. A
maior parte de nós vive nos dias de hoje confinado ao universo do
nós - eu e meus amigos, eu e minha garota, eu e minha família - e
tem com o resto do mundo uma relação de ignorância ou hostilidade.
São eles.
Aquilo
que antigamente se chamava de vida privada tornou-se a única forma
de existência. Vamos ao futebol ou aa balada, votamos a cada dois
anos, mas vivemos a maior parte do tempo no interior da nossa bolha,
onde experimentamos solitariamente as glórias e misérias do
cotidiano. A vida pública, momento em que faríamos parte de algo
maior do que nós mesmos, não existe. Ou quase.
Nesta
semana, com as manifestações que tomaram as ruas das cidades
brasileiras, houve uma espécie de renascimento. O coletivo e o geral
atropelaram o particular. Milhares de pessoas deixaram seus problemas
pessoais na gaveta e foram marchar por questões públicas, como
cidadãos. Com esse pequeno gesto grandioso, revelaram ao país uma
forma nobre e esquecida de felicidade, a de participar.
Quando
nós viramos eles e eles viraram nós, foi possível perceber que não
somos, afinal, tão diferentes. Com essa descoberta, o círculo de
nossas relações se ampliou para incluir um número maior e mais
heterogêneo de pessoas. Nosso universo se expandiu, nossa percepção
enriqueceu, nos tornamos seres humanos mais interessaentes, e
melhores. Além de mais poderosos. Ainda que momentaneamente.
Nos
últimos anos - sejamos sinceros - andávamos obcecados por nossos
problemas pessoais. Os amores. O trabalho. A familia. Foi como se o
resto não nos dissesse respeito. Ou estivesse fora do nosso alcance.
Chegamos a duvidar que aquilo que acontece "lá fora", no
mundo da política, fosse capaz de penetrar nossa redoma privada e
nos afetar. Mas penetrou e afetou, não? A violência, a pobreza, a
injustiça, a corrupção... Aquilo que impede a felicidade de todos
de alguma forma atrapalha a felicidade de cada um de nós. Isso
aprendemos.
Talvez
possamos, então, recomeçar, agora de um jeito mais equilibrado.
Somos
indivíduos, com nossos sentimentos e nossos problemas, mas também
somos parte da multidão. Algumas respostas que buscamos sozinhos
talvez possam ser encontradas na companhia de outros. A fraternidade
baseada em valores, e não apenas em cerveja, pode aquecer os nossos
corações. Talvez ela seja um contraponto a certa afetividade triste
que se multiplica por aí, na forma de amores sem esperança. O que
não falta na rua é esperança: muita angústia se perde na confusão
das passeatas e nunca mais é encontrada; muita dor de cotovelo
desaparece. O mundo coletivo oferece novas emoções. Por que não
abraçá-las?
Da
minha parte, tenho me lembrado, diariamente, de um verso de Carlos
Drummond de Andrade em Canção Amiga: "Minha vida, nossas
vidas, formam um só diamante". É isso. Como podemos nos
dividir em nós e eles se fazemos parte de um todo eterno e
cintilante?
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