"É como se a moçada do Plano Piloto, gente de ‘mente aberta’ e acesso a uma boa universidade, dissesse aos emergentes da Uniban: ‘Viram? Nós podemos. Vocês não’".
Não se trata de um recorde apenas brasileiro. No mundo todo, nunca antes o público ganhara igual oportunidade de contemplar a arte da corrupção em tal esplendor. Entre os itens da rica coleção de filmes estrelada pelo governador Arruda e sua turma, cada um terá suas próprias prefe-rências. A deste colunista é a seguinte:
Medalha de bronze, empatados: 1) Aquele em que o governador, escarrapachado no sofá, é despertado da sonolência pela mão amiga que lhe estende os maços de dinheiro. "Ah, ótimo", ele diz. Justificativa do prêmio: a naturalidade com que o governador saúda a oferta, embalada por um "ah, ótimo" tão protocolar como o que saudasse a chegada do cafezinho. 2) Aquele em que a deputada entra na sala, recebe o dinheiro, abre a bolsa, guarda o dinheiro e se vai. Justificativa: a simplicidade do ato.
Medalha de prata: o filme da oração, em que três dos propineiros se abraçam e agradecem ao Senhor a graça concedida. Justificativa: a força da fé, mesmo em circunstância em que o comum das pessoas não esperaria sua presença.
Medalha de ouro: o filme em que o presidente da Assembleia de Brasília, sentado diante do distribuidor da propina, recebe os maços e os vai alocando, primeiro, nos diferentes bolsos do paletó, depois nas meias. Justificativa: a didática exposição do caráter clandestino da propina, mas não apenas isso. O filme leva a palma também por seus valores estéticos. O personagem está bem vestido, exibe uma silhueta esguia, e os movimentos que executa, primeiro com os braços, conduzindo as mãos aos bolsos, em seguida com as pernas, levantando uma, depois a outra, para alcançar as meias, mostram flexibilidade e boa coordenação. É o estilo a serviço da corrupção.
Ainda falta acrescentar um detalhe, uma nota de rodapé, ao episódio em que a moça de minissaia foi escorraçada pelas hordas de trogloditas da universidade Uniban, em São Paulo. O detalhe, que talvez não seja tão detalhe assim, foi a manifestação encenada na Universidade de Brasília por algumas dezenas de estudantes, homens e mulheres, alguns em roupas íntimas, outros sem roupa alguma, em protesto contra o ocorrido. Duas moças de peitos de fora escreveram na pele: "O corpo é meu". Um grupo de meninas entoava: "Eu uso o que quiser / eu sou mulher".
Não foi noticiado se, como usam, ou não usam, o que bem entendem, os estudantes costumam assistir às aulas pelados. Presume-se que não. Mas naquele dia puderam, sim, exibir-se pelados no câmpus. Em si o fato não seria tão relevante se não revelasse… falar nisso é chato, é quase proibido, mas vá lá… se não revelasse uma questão de classe. É como se a juventude dourada do Plano Piloto, abençoada, entre outras coisas, com o acesso a uma boa universidade e a um meio de hábitos livres e "mente aberta", dissesse aos emergentes da Uniban, condenados a uma universidade ruim e a um meio de hábitos não tão livres e men-tes não tão abertas: "Viram, seus basbaques? Nós podemos. Vocês não". Acrescente-se que a moçada do Plano Piloto cursa uma universidade gratuita, enquanto a Uniban cobra caro de sua clientela classe C, e tem-se um retrato que, para além dos costumes, flagra a perversidade do sistema brasileiro de ensino superior em seu coração.
O Ministério das Cidades lançou uma campanha em que ensina aos pedestres que só devem atravessar a rua na faixa – e depois de esperar que os carros parem. Que é isso, Ministério das Cidades?! O alvo está invertido. É o motorista que tem de ser instruído a parar, assim que avista um pedestre na faixa. Essa é a questão central.
Esclareça-se desde logo que o que está em pauta é a faixa de pedestres sem semáforo. Com semáforo as coisas se simplificam: o sinal fecha, os carros param. Nesses locais nem precisaria haver faixa zebrada. Bastaria uma linha sinalizando o ponto em que os carros devem parar. O que os motoristas brasileiros não compreendem é que, à vista de uma faixa de pedestres onde não há semáforo, já ocupada ou em via de ser ocupada por pedestres, devem também obrigatoriamente parar. (Uma exceção surpreendente são os motoristas de Brasília: depois de uma série de atropelamentos, uma campanha de imprensa e multas que passaram a ser aplicadas, mais de dez anos atrás, aprenderam a respeitar a faixa.)
A faixa de pedestres é um marco civilizatório. Os países se dividem entre aqueles cujos motoristas a respeitam e os que não. O Brasil já conseguiu a capa da Economist e o investment grade das agências de risco. Falta a promoção no quesito res-peito à faixa de pedestres.