Livro reúne
conversas do ator com amigo
durante almoços nos anos 1980
Spencer Tracy era "um homem odioso", James
Stewart, "mau ator", Charlie Chaplin, "arrogante" e
Lawrence Olivier, "um estúpido". São opiniões muitos pessoais, feitas
num contexto privado, mas como foram ditas pela boca de um dos maiores mitos do
cinema, se tornam saborosas. O tipo de declaração sincera que gostaríamos de
escutar mais vezes, no lugar das respostas tediosas dos manuais politicamente
corretos.
No início dos anos 80, o cineasta Henry Jaglom gravou
uma série de conversas com seu amigo Orson Welles ao longo de vários almoços no
restaurante Ma Maison, em Los Angeles (dizem que Welles sempre estava no canto
mais escuro do local). Eram conversas entre amigos, livres de preconceitos, nos
quais o ator falava sem filtros sobre seus colegas de Hollywood, para o bem e
para o mal, e dava opiniões sobre diferentes aspectos da indústria
cinematográfica.
Trinta anos depois, o escritor e historiador do cinema
Peter Biskind recuperou em um livro as transcrições dessas conversas,
escondidas até então numa garagem desde a morte de Welles em outubro de 1985. O
site Vulture publicou um trecho do livro há alguns dias no qual aparecem várias
joias.
"My Lunches With Orson: Conversations between
Henry Jaglom and Orson Welles" ("Meus almoços com Orson: conversas
entre Henry Jaglom e Orson Welles", numa tradução livre) estará à venda
(em inglês) a partir de 16 de julho. Biskind escreve uma introdução para dar
contexto às conversas, explicando quem entra no restaurante, quem sai, o que
comem, etc.
Fica a dúvida se Welles sabia que estava sendo gravado
e que esse material poderia vir a ser publicado um dia. Apesar de isso pouco
poderia importar para uma das figuras mais independentes e com personalidade
mais forte da Era de Ouro do cinema americano — e que foi ele próprio muito
criticado pela indústria. Um homem que, aos 80 anos, permanecia uma lenda do
cinema, mesmo após quatro décadas do lançamento de seus principais filmes, como
“Cidadão Kane” (1941), “Soberba” (1942) e “A marca da maldade” (1958).
Welles se preocupava menos ainda com a morte — o que
parecia assustá-lo era o risco de não ser ele mesmo a contar suas histórias,
como sugere o próprio Jaglom em uma coluna do Los Angeles Times, em 2008, na
qual recorda seu último almoço com o amigo: “Orson me disse que começavam a
chover ataques em resposta a um monte de livros que tinham sido recentemente
publicados sobre ele, principalmente a biografia de Barbara Leaming, muito
positiva em relação a ele, e na sua opinião muito acertada. Mas ele não havia
lido nem iria ler, pois sabia que ficaria entediado, já ela usava suas melhores
histórias. ‘Não deveria ter liberado, estava guardando elas para mim, para
algum dia’, disse. Mas eu sabia que o sucesso do livro o deixava feliz...”.
No livro, estão declarações sobre como Welles gostaria
de morrer: “Gostaria de morrer sozinho num quarto de hotel, simplesmente
desligar-me, como as pessoas costumavam fazer...”. O ator morreu em 10 de
outubro de 1985 em casa, vítima de um ataque do coração. Foi encontrado no chão
do quarto. Morreu no mesmo dia que Yul Brynner, com quem trabalhou, como ator,
em “A batalha do Neretva” (1969). Suas cinzas jazem em Ronda, na Espanha, um de
seus lugares favoritos.
Welles comenta como o aspecto físico de muitos de seus
companheiros o repelia: “Nunca suportei olhar para Bette Davis, , por isso não
quero vê-la atuar”. “Odeio Woody Allen fisicamente (o conheci em pessoa) (...)
tem a doença de Chaplin, essa particular combinação de arrogância e timidez que
me irrita”. Allen homenageou Welles em uma de suas cenas mais famosas, de “A
dama de Xangai”, em “Um misterioso assassinato em Manhattan”.
Em dado momento, Jaglom sugere que na era de ouro de
Hollywood os grandes negócios eram fechados com um aperto de mão, sem
contratos, e Welles concorda: “De acordo com todas as culturas protestantes ou
judias, a América se desenvolveu com a ideia de que sua palavra é uma garantia.
(...) Se não fosse assim, a fronteira nunca haveria se expandido, pois não
havia lei. A palavra de um homem precisava significar algo. Minha teoria é que
tudo foi por água abaixo com a Lei Seca, pois era uma lei que ninguém podia
obedecer.”
O caráter de Welles também aparece nas descrições de
seus gestos e respostas a garçons e outros que se aproximam para falar com ele.
Richard Burton chega e muito gentilmente explica que Elizabeth Taylor está
sentada do lado de fora, mas gostaria de encontrá-lo. Seco e direto, Welles
responde: “Não. Como pode ver, estou na metade da minha refeição. Passo por
vocês na saída.”
Burton sai e Jaglom comenta que o amigo se comportou
como “um babaca” e foi muito grosseiro. O ator contesta: “Não me chute por
baixo da mesa. Odeio isso. Não preciso que você seja a minha consciência. (...)
Richard Burton tinha um grande talento, mas arruinou seu dom. Se tornou uma
piada com uma celebridade como esposa. Agora só trabalha por dinheiro, faz as
piores merdas. E não fui grosseiro, para citar Carl Laemmle, 'dei uma resposta
evasiva. Disse a ele, vá se ferrar’”.
Cada citação de Welles é uma pérola:
“‘O poderoso chefão’ é a glorificação de um grupo de
vagabundos que nunca existiu. O melhor deles era o tipo de pessoa que você
espera que dirija um caminhão de cerveja. Não tinham classe. Os gângsters como
classe são uma invenção de Hollywood.”
“‘Cidadão Kane é uma comédia no sentido clássico da
palavra, porque as situações trágicas são parodiadas.”
“Adorava Carole Lombard. Foi uma amiga muito próxima.
Sabe por que seu avião caiu? (A atriz morreu em um acidente aéreo em 1942, em
Nevada) O avião estava cheio de físicos americanos, foi derrubado pelos
nazistas. Ela era uma das civis a bordo. Agentes nazistas na América. É um
filme de suspense de verdade.”
“Sim, conheci Roosevelt (presidente dos EUA de 1953 a
1961). Gostava de ficar acordado até tarde e conversar. Comigo se sentia livre.
Eu não precisava ser manipulado. Ele não precisava do meu voto. Apenas me
dizia: ‘Nós dois somos os melhores atores na América.”
Entre os que mereciam seu elogia se destacam Joseph
Cotten, "brilhante"; John Wayne, "um dos mais educados que
conheci em Hollywood"; e o diretor Carol Reed, com quem trabalho em “O
terceiro homem”. O clássico de 1949, com roteiro de Graham Greene, terá em
breve uma adaptação musical que será encenada em Viena, onde se passa a
história. Em 1999 “O terceiro homem” foi escolhido o melhor filme britânico do
século XX, a frente de outros clássicos como "Lawrence da Arábia".
Teria sido interessante ouvir os comentários de Welles sobre o musical...