Eu olhava para cima e via o teto abobadado do prédio antigo, coberto por aquela luz gélida que só os hospitais conseguem ter. Não era a beleza arquitetônica que eu admirava.
Era puro reflexo da dor dilacerante na região lombar: a cada espasmo, a cada sensação de faca entrando por entre os ossos e músculos, de choque profundo na base nas costas, eu fechava os olhos e levantava o queixo, segurando a respiração, para conter o grito no corredor e aliviar o sofrimento, que parecia aumentar quando o ar entrava pelos pulmões.
Eu não poderia imaginar que a roupa escolhida por mim naquela manhã de trabalho acabaria pendurada num vestíbulo de sala de radiografia. E, enquanto minha blusa de lã descansava, presa no gancho metálico pregado na parede do velho hospital público lisboeta, eu me contorcia de dor na mesa, deitada, esperando pelas ondas invisíveis que revelariam que nada estava quebrado.
“É uma lesão traumática nos discos vertebrais”, explicaria a médica mais tarde, naquela noite.
Antes disso, porém, a técnica (ou médica) responsável pela radiografia me disse que, além da nudez acima do tronco, eu deveria “abrir as calças e chegar para baixo”. Uma leve túnica azul marinho tampava meus seios do olhar externo, mas nenhuma vergonha chegava até mim, tamanha a dor que ocupava meu pensamento. Com sofrimento e vagareza, abri o zíper e, quase uivando, fui deslizando meu corpo para baixo da mesa gelada, quando a senhora me disse: “Que estás a fazer”? “Não era para ir um pouco mais para baixo?” “Eu não disse chegue-se para baixo, mas chegue as calças para baixo”. A confusão semântica na mesma língua não poderia ter acontecido em hora menos dolorida?
Depois do escrutínio, chega a vez da “injeção no rabo”, e a picada no bumbum doeu menos do que as costas, que se contraíram com a aproximação da agulha. O machucado na lombar, provocado por uma quase queda no dia anterior, iria melhorar logo. E eu poderia esperar lá fora, no corredor. Encostada na parede do lado de fora da sala de emergência, vi à minha frente, pela porta de correr semiaberta que me dava visão para o atendimento, uma mulher a vomitar um líquido branco e viscoso. E minha dor só aumentou.
“Não quer se sentar?” Escuto uma voz à minha frente e levanto a cabeça, à procura da boca que havia pronunciado a frase. Do outro lado do corredor, uma moça, mais ou menos da minha idade, ostentava uma etiqueta no peito e me olhava com solidariedade.
A identificação colada na roupa, e não usada como pulseira, como a minha (que ostentava o tom amarelado do código de “urgente”), mostrava que ela esperava por alguém que era atendido.
“Não posso me sentar. Tenho dor nas costas.” E veio outro espasmo. E mais uma vez meus olhos se fecharam, a respiração bloqueou e eu olhei para o teto abobadado. Quando volto o pescoço para os 90 graus, abro os olhos, e a vejo atravessar o corredor que nos separava. “Pega na minha mão quando sentir dor. Ajuda. Eu já tive isso.” E então aquela desconhecida me deixou contrair os ossos de sua mão a cada vez que as costas me lembravam do motivo de eu estar ali.
Para além disso, o relaxante muscular começou a fazer efeito, e eu via o mundo mais embaçado. Ela arranja uma cadeira de rodas e eu posso soltar o corpo, enquanto os espasmos começam a diminuir pouco a pouco. Então chega o meu amigo e vizinho português que, talvez por ter nascido nas ilhas, mais perto do outro continente, herdou a simpatia e o afeto intenso dos brasileiros.
Mesmo o conhecendo há apenas duas semanas, ele atravessou Lisboa e foi resgatar a vizinha. Enquanto isso, outra amiga de menos de um mês, brasileira, me mandava mensagens preocupadas, me chamando de “irmãzinha”, como havíamos nos chamado num momento de carinho mais cedo naquele dia.
A solidariedade no sofrimento, o cuidado, o carinho. E a luz antes gélida ganha um tom mais quente, e a dor vai passando. O hospital público de Lisboa lembra os nossos, com funcionários e paciência de menos, mau humor e macas demais (tudo em menor grau).
Mas a atenção e o aconchego me lembraram também do conforto de casa. O abraço da mãe. O beijo do pai. Aquela mão que eu apertava firme representava isso tudo, e todo o resto.
Nota: Como essa história se passa em Lisboa, não ficaria imune ao surrealismo luso que tantas vezes já me surpreendeu. Antes disso tudo, logo ao chegar ao hospital, aproximou-se de mim uma senhorinha, que me olhava com cara de imensa pena. "Eu já tive uma dor como a da menina. Foram 17 meses de cama. 17 meses...." E repetia: "17 meses, 17 meses". Eu olhava pra ela, atônita, com imensa dor, enquanto ela repetia, na sua tentativa de ser solidária, e eu pensava no tempo que ficaria com aquela dor: “17 meses, 17 meses”...