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O HOMEM QUE QUER GANHAR SEMPRE - Juliana Doretto


Todas as vezes em que acabo de redigir um texto para este blog, fico tensa. Não (só) com a repercussão do que acabei de escrever, mas sobretudo com a decisão sobre o que escreverei a seguir. Fico matutando, pensando em frases. Anoto ideias em qualquer pedaço de papel. Se não há como anotar, faço esforço para manter o pensamento trancafiado na mente, lembrando-me dele várias vezes, até que ele possa ser libertado num bloco de anotações, no computador, no celular. Minha escrita não é automática. Não tenho esse talento. Ela é cozida em banho-maria. Para esta semana, estava tudo assim, alinhavado. Mas terei que deixar o rascunho de lado e me atirar na escrita imediata. Porque a vida assim pediu. 
   
Estava na Hungria.  Fim de semana em Budapeste, calor de 38 graus. Uma cidade linda, que chama a atenção de sua câmera fotográfica o tempo todo. Antes de um passeio de barco, o vendedor de bilhetes quis saber de onde vínhamos. “Oh, Brasil. São Paulo? Eu ouvi que as taxas de criminalidade são enormes lá, não?” E novamente entra em cena o brasileiro expatriado, que se esforça para quebrar ao menos um pouco os estigmas do Brasil: “Mais ou menos, mas não é exatamente um terror…”. A conversa me fez lembrar da última ida ao Brasil. No táxi, em São Paulo, a caminho de casa, à noite, tive medo de que um assaltante viesse de carro, batesse no vidro e desse um tiro. Nunca tinha tido essa sensação, nem havia motivo especial para esse sentimento naquele momento. Estranhei.

Na volta para Praga, cidade em que caminho pela rua à meia-noite sem nenhuma preocupação, botei a culpa na tranquilidade daqui para a minha paranoia naquela noite em São Paulo. Num lugar em que os caixas eletrônicos ficam nas calçadas, sem proteção, em que o perigo maior são, segundo os locais, os batedores de carteira, talvez tenha relaxado demais. Ainda seguro a bolsa com força, mas não olho para trás sempre que ando na rua e já me arrisquei a levantar da cadeira na biblioteca, deixando o computador ali, como todos os outros fazem, enquanto vou ao banheiro. Confesso também que tive medo de voltar à mesa e não achar mais nada.

Mas o fato é que eu nunca fui assaltada em São Paulo. E os batedores de carteira nunca me pegaram em Praga. Tudo mudou em Budapeste. Foi ali, mas poderia ter sido em outro lugar. Eu não me engano. Para que você entenda por que digo isso, vou começar a história pelo final. Depois de tudo, ouvi a seguinte frase: “Na vida, você não ganha sempre”. Isso não tem a ver com a cidade em que você está. Tem a ver com a vida.

Estávamos no lobby de um hotel, o Courtyard, tomando algo gelado no bar (calor de 38 graus, lembra-se?) enquanto esperávamos o horário de pegar o trem. Na saída, demos falta da mochila. Sumiu. Como? Foram olhar as fitas de segurança. Um ladrão levou. Como? As câmeras não pegaram toda a ação do ladrão, me disse o gerente. E não pudemos ver as imagens, pela lei húngara. Eram quatro pessoas na mesa. Ninguém viu ninguém se aproximando.

Nenhum funcionário do hotel notou algo. Evaporou-se, com nossas passagens de volta, nossas fotos da viagem…

Imagino que o sentimento que venha após o roubo seja semelhante para todos. Uma explosão de contradições: raiva do ladrão, raiva do hotel, raiva de si mesmo, tristeza, ódio, pesar, medo, sensação de invasão, de fracasso, de insegurança, alegria por ninguém ter se machucado e por aí vai. Depois de sentir esse turbilhão, minha primeira reação foi: como você, que vem do Brasil, acostumada a temer coisa pior, pôde ser feita de boba assim. Minha segunda reação foi: não quero viajar mais, tenho medo de acontecer de novo, e agradeço porque não me machuquei. Minha terceira reação acontece agora: ninguém está imune a isso.

Por aqui, a desigualdade não é tão grande quanto no Brasil, e acredito fortemente que isso seja uma grande razão para a baixa criminalidade. Como jornalista, já vi muitas crianças morando em casas feitas com papelão e madeira, com mais buracos que paredes, e que sentem o cheiro do esgoto que passa ao lado o dia inteiro, por anos. Digo, sinceramente, que não me espanto se essa criança começar a roubar. Não se trata de uma justificativa. Como bem sabemos, a miséria nem sempre gera violência. Não quer dizer que não ficarei possessa se isso acontecer comigo, que não vou ter raiva. Mas não podemos negar a revolta que essa situação pode alimentar nessa criança. Só que aqui, sem favelas, sem meninos cheirando cola na rua, sem mulheres com bebê de colo embaixo de viadutos, a criminalidade é também muito crua.

Ok. Aqui, ninguém aponta arma para sua cabeça, eu sei (ou, pelo menos, é mais raro que no Brasil). A “tecnologia” do sequestro-relâmpago, da saidinha de banco e de outros crimes não se estabeleceu por aqui. Eu sei. E sei que isso é bom. Mas o espanto que essa situação me causou foi intenso e me modificou. Você pode dizer que isso ocorreu porque foi a primeira vez que levaram algo meu. Concordo, mas percebo que não foi só isso. Porque o ladrão bem vestido que entrou sem despertar a atenção no lobby do hotel e levou minha câmera não fez isso porque precisava comer. Nem precisava de trocado para comprar “pedra” na cracolândia de Budapeste. E, provavelmente, não tenha certeza da impunidade. Talvez tenha feito isso porque o ser humano tem um lado ruim que não precisa de alimento nenhum para aparecer. E eu já não sabia disso? Já, mas acho que agora entendi.

Não estou segura na Europa, em Praga, em São Paulo, em nenhum lugar. Posso redobrar a atenção com minha bolsa, mas isso não me garante imunidade. Porque tem sempre alguém que vai querer ganhar sempre. Se, no Brasil, a miséria (e a impunidade) estão presentes, aqui, elas podem não entrar na conta. Esse homem “que quer ganhar sempre” vai levar o que não é dele; ele vai ficar com suas fotos (talvez até ria delas); vai achar que é muito esperto por ganhar dinheiro às custas dos outros.

Isso é só um exemplo. Há inúmeras situações em que essa pessoa “que quer ganhar sempre” aparece. Ela está em todo lugar e em todas as atividades humanas. Eu não ganho sempre. E você, meu leitor, também não. Mas já ganhei dele e de muitos outros como ele. Porque entendi que eu não preciso ganhar sempre. Isso faz de mim um ser humano melhor que ele. E isso ele não rouba de mim.

Por Juliana Doretto
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PODE APERTAR MINHA MÃO QUANDO DOER - Juliana Doretto

Eu olhava para cima e via o teto abobadado do prédio antigo, coberto por aquela luz gélida que só os hospitais conseguem ter. Não era a beleza arquitetônica que eu admirava. 

Era puro reflexo da dor dilacerante na região lombar: a cada espasmo, a cada sensação de faca entrando por entre os ossos e músculos, de choque profundo na base nas costas, eu fechava os olhos e levantava o queixo, segurando a respiração, para conter o grito no corredor e aliviar o sofrimento, que parecia aumentar quando o ar entrava pelos pulmões.

Eu não poderia imaginar que a roupa escolhida por mim naquela manhã de trabalho acabaria pendurada num vestíbulo de sala de radiografia. E, enquanto minha blusa de lã descansava, presa no gancho metálico pregado na parede do velho hospital público lisboeta, eu me contorcia de dor na mesa, deitada, esperando pelas ondas invisíveis que revelariam que nada estava quebrado. 

“É uma lesão traumática nos discos vertebrais”, explicaria a médica mais tarde, naquela noite.

Antes disso, porém, a técnica (ou médica) responsável pela radiografia me disse que, além da nudez acima do tronco, eu deveria “abrir as calças e chegar para baixo”. Uma leve túnica azul marinho tampava meus seios do olhar externo, mas nenhuma vergonha chegava até mim, tamanha a dor que ocupava meu pensamento. Com sofrimento e vagareza, abri o zíper e, quase uivando, fui deslizando meu corpo para baixo da mesa gelada, quando a senhora me disse: “Que estás a fazer”? “Não era para ir um pouco mais para baixo?” “Eu não disse chegue-se para baixo, mas chegue as calças para baixo”. A confusão semântica na mesma língua não poderia ter acontecido em hora menos dolorida?

Depois do escrutínio, chega a vez da “injeção no rabo”, e a picada no bumbum doeu menos do que as costas, que se contraíram com a aproximação da agulha. O machucado na lombar, provocado por uma quase queda no dia anterior, iria melhorar logo. E eu poderia esperar lá fora, no corredor. Encostada na parede do lado de fora da sala de emergência, vi à minha frente, pela porta de correr semiaberta que me dava visão para o atendimento, uma mulher a vomitar um líquido branco e viscoso. E minha dor só aumentou.

“Não quer se sentar?” Escuto uma voz à minha frente e levanto a cabeça, à procura da boca que havia pronunciado a frase. Do outro lado do corredor, uma moça, mais ou menos da minha idade, ostentava uma etiqueta no peito e me olhava com solidariedade. 

A identificação colada na roupa, e não usada como pulseira, como a minha (que ostentava o tom amarelado do código de “urgente”), mostrava que ela esperava por alguém que era atendido.

“Não posso me sentar. Tenho dor nas costas.” E veio outro espasmo. E mais uma vez meus olhos se fecharam, a respiração bloqueou e eu olhei para o teto abobadado. Quando volto o pescoço para os 90 graus, abro os olhos, e a vejo atravessar o corredor que nos separava. “Pega na minha mão quando sentir dor. Ajuda. Eu já tive isso.” E então aquela desconhecida me deixou contrair os ossos de sua mão a cada vez que as costas me lembravam do motivo de eu estar ali.

Para além disso, o relaxante muscular começou a fazer efeito, e eu via o mundo mais embaçado. Ela arranja uma cadeira de rodas e eu posso soltar o corpo, enquanto os espasmos começam a diminuir pouco a pouco. Então chega o meu amigo e vizinho português que, talvez por ter nascido nas ilhas, mais perto do outro continente, herdou a simpatia e o afeto intenso dos brasileiros.

Mesmo o conhecendo há apenas duas semanas, ele atravessou Lisboa e foi resgatar a vizinha. Enquanto isso, outra amiga de menos de um mês, brasileira, me mandava mensagens preocupadas, me chamando de “irmãzinha”, como havíamos nos chamado num momento de carinho mais cedo naquele dia.

A solidariedade no sofrimento, o cuidado, o carinho. E a luz antes gélida ganha um tom mais quente, e a dor vai passando. O hospital público de Lisboa lembra os nossos, com funcionários e paciência de menos, mau humor e macas demais (tudo em menor grau).

Mas a atenção e o aconchego me lembraram também do conforto de casa. O abraço da mãe. O beijo do pai. Aquela mão que eu apertava firme representava isso tudo, e todo o resto.

Nota: Como essa história se passa em Lisboa, não ficaria imune ao surrealismo luso que tantas vezes já me surpreendeu. Antes disso tudo, logo ao chegar ao hospital, aproximou-se de mim uma senhorinha, que me olhava com cara de imensa pena. "Eu já tive uma dor como a da menina. Foram 17 meses de cama. 17 meses...." E repetia: "17 meses, 17 meses". Eu olhava pra ela, atônita, com imensa dor, enquanto ela repetia, na sua tentativa de ser solidária, e eu pensava no tempo que ficaria com aquela dor: “17 meses, 17 meses”...

PEQUENO MANUAL DA VIDA MAL RESOLVIDA - Juliana Doretto

Eu estou em crise. Assim como a economia europeia, a Síria ou a política de combate a enchentes no Rio. Em épocas assim, as pessoas perguntam o que está acontecendo, como tudo começou, qual a perspectiva de melhora. 

Contando a mesma história para muita gente e passando a vida a limpo, numa espécie de sessão de terapia contínua, o resultado pode ser bastante confuso: não percebi o que estava acontecendo? Errei? Não me controlei? Não sou madura o suficiente?

De todo esse período, venho sistematizando algumas ideias, que vão contra a corrente dos livros de autoajuda, mas que me parecem mais atadas à minha realidade do que pregam os gurus do autocontrole e da “vida bem resolvida” (e aqui crio uma rima pobre por falta de sinônimo melhor para a expressão). Eu não espero que você, caro leitor, concorde com todas – nem mesmo com uma delas. O objetivo deste texto, assim como todos os outros deste blog, acredito, é compartilhar pensamentos e propor reflexões. Certo ou errado não são os tópicos aqui.

É preciso ser forte”: como disse uma amiga minha, eu quero é ser fraca. Chorar, sofrer, desabafar fazem parte das rotinas humanas e não é vergonha nenhuma dizer que a dor está muito forte e que está difícil de segurar. Deixar lágrimas escorrerem em público, querer passar um dia triste, sentir que está sem chão naquele momento não fazem de você uma pessoa frágil e que não agradece pelos inúmeros momentos de felicidade que vive. 

Do mesmo jeito que o corpo dá sinais de alerta, com dores, para nos dizer que há algo errado, nossa mente e nossas emoções mostram que há pontos complicados na vida. E, assim como o físico, não há cura para tudo – mas também há sempre algo que ajuda a diminuir o peso. Em todos os casos, buscar tratamento – e ser firme nele, até os últimos recursos – também é sempre possível.

Viver não é complicado. Somos nós que complicamos a vida”: mentira deslavada (ou sem-vergonha, que é um sinônimo mais saboroso, mas muito menos conhecido da palavra). Viver é complicado, sim. Amar alguém, e ser amado por ela, não torna as relações fáceis. Escolher uma profissão e gostar do que faz não evita que queiramos jogar a toalha às vezes. Amar os filhos não anula erros na criação. Amar os pais não impede que possamos ofendê-los quando queremos que eles se cuidem. Ver avós morrendo, seguindo a trajetória natural da vida, não torna a separação menos sofrida. Somos bichos complicados, inseguros, com medo de fazer escolhas erradas, traumatizados pelos eventos do passado. Isso implica que vamos errar, ferir, ofender, distorcer, recuar, mudar, tantas vezes quantas forem necessárias no meio do caminho. 

Pedir desculpas não vai adiantar, mas também mal não irá fazer. Dizer que aquilo serviu de aprendizado para não fazer de novo é meia verdade, porque sempre podemos errar novamente – mas, como meia verdade, isso também tem, obviamente, seu lado genuíno.

Seja firme nas suas decisões”: não sei se acontece com todos, mas às vezes eu passo longos minutos olhando o cardápio, penso seriamente em que prato pedir, faço a escolha confiante e, quando chega a refeição, percebi que me enganei: o molho não era o que eu pensava. Seria ótimo se longos momentos de reflexão garantissem a decisão mais acertada, mas, se isso não é assim nem com a comida, que dirá com as emoções, com as relações, com os gostos. 

Eu detecto em minha vida algumas certezas: amo algumas pessoas, aprecio fazer determinadas coisas, quero cumprir certos objetivos (de vida profissional e de mudança ou evolução de personalidade). São pontos que não têm mudado com o tempo, mas, para continuarem assim, elas precisam ser cultivadas a cada novo dia. Então, eu não sou firme com as minhas decisões: eu as repito todo dia. Entende a diferença?

Mantenha o autocontrole”: adoraria ser capaz disso, o tempo todo. Se algum leitor consegue, por favor, avise. Eu busco evoluir, e nesse período crítico passei por várias situações em que gostaria de ter tido a esperteza de me enfiar em um buraco e esperar a raiva e o desespero passarem antes de fazer alguma coisa. Estou cotidianamente buscando melhorar nesse sentido, mas confesso que retrocedo várias vezes ou cometo o mesmo erro outras tantas, ainda que eu reflita, ore, faça terapia, escreva sobre isso… 

Se houver algum ser humano que consiga nunca dar uma resposta mais seca; nunca dizer algo desnecessário e que machuque; ou mesmo nunca hesitar em dizer o que tem de ser dito no momento, por favor, me ensine o caminho. 

Se houver um modo mais fácil de ser humano, imperfeito, emotivo, confuso e inseguro, serei a primeira a segui-lo. No momento, apenas sigo sendo humana, ciente do que é sê-lo, mas sem a certeza de que conheço tudo da minha própria humanidade.

JULIANA DORETTO - Pequeno manual da vida mal resolvida

A vida tem sofrimento, 
mas com ele vem a inspiração

Eu estou em crise. Em épocas assim, as pessoas perguntam o que está acontecendo, como tudo começou, qual a perspectiva de melhora. Contando a mesma história para muita gente e passando a vida a limpo, numa espécie de sessão de terapia contínua, o resultado pode ser bastante confuso: não percebi o que estava acontecendo? Errei? Não me controlei? Não sou madura o suficiente?

De todo esse período, venho sistematizando algumas ideias, que vão contra a corrente dos livros de autoajuda, mas que me parecem mais atadas à minha realidade do que pregam os gurus do autocontrole e da “vida bem resolvida” (e aqui crio uma rima pobre por falta de sinônimo melhor para a expressão). Eu não espero que você, caro leitor, concorde com todas – nem mesmo com uma delas. O objetivo deste texto, assim como todos os outros deste blog, acredito, é compartilhar pensamentos e propor reflexões. Certo ou errado não são os tópicos aqui.

“É preciso ser forte”: como disse uma amiga minha, eu quero é ser fraca. Chorar, sofrer, desabafar fazem parte das rotinas humanas e não é vergonha nenhuma dizer que a dor está muito forte e que está difícil de segurar. Deixar lágrimas escorrerem em público, querer passar um dia triste, sentir que está sem chão naquele momento não fazem de você uma pessoa frágil e que não agradece pelos inúmeros momentos de felicidade que vive. Do mesmo jeito que o corpo dá sinais de alerta, com dores, para nos dizer que há algo errado, nossa mente e nossas emoções mostram que há pontos complicados na vida. E, assim como o físico, não há cura para tudo – mas também há sempre algo que ajuda a diminuir o peso. Em todos os casos, buscar tratamento – e ser firme nele, até os últimos recursos – também é sempre possível.

“Viver não é complicado. Somos nós que complicamos a vida”: mentira deslavada (ou sem-vergonha, que é um sinônimo mais saboroso, mas muito menos conhecido da palavra). Viver é complicado, sim. Amar alguém, e ser amado por ela, não torna as relações fáceis. Escolher uma profissão e gostar do que faz não evita que queiramos jogar a toalha às vezes. Amar os filhos não anula erros na criação. Amar os pais não impede que possamos ofendê-los quando queremos que eles se cuidem. Ver avós morrendo, seguindo a trajetória natural da vida, não torna a separação menos sofrida. 

Somos bichos complicados, inseguros, com medo de fazer escolhas erradas, traumatizados pelos eventos do passado. Isso implica que vamos errar, ferir, ofender, distorcer, recuar, mudar, tantas vezes quantas forem necessárias no meio do caminho. Pedir desculpas não vai adiantar, mas também mal não irá fazer. Dizer que aquilo serviu de aprendizado para não fazer de novo é meia verdade, porque sempre podemos errar novamente – mas, como meia verdade, isso também tem, obviamente, seu lado genuíno.

“Seja firme nas suas decisões”: não sei se acontece com todos, mas às vezes eu passo longos minutos olhando o cardápio, penso seriamente em que prato pedir, faço a escolha confiante e, quando chega a refeição, percebi que me enganei: o molho não era o que eu pensava. Seria ótimo se longos momentos de reflexão garantissem a decisão mais acertada, mas, se isso não é assim nem com a comida, que dirá com as emoções, com as relações, com os gostos. Eu detecto em minha vida algumas certezas: amo algumas pessoas, aprecio fazer determinadas coisas, quero cumprir certos objetivos (de vida profissional e de mudança ou evolução de personalidade). São pontos que não têm mudado com o tempo, mas, para continuarem assim, elas precisam ser cultivadas a cada novo dia. Então, eu não sou firme com as minhas decisões: eu as repito todo dia. Entende a diferença?

“Mantenha o autocontrole”: adoraria ser capaz disso, o tempo todo. Se algum leitor consegue, por favor, avise. Eu busco evoluir, e nesse período crítico passei por várias situações em que gostaria de ter tido a esperteza de me enfiar em um buraco e esperar a raiva e o desespero passarem antes de fazer alguma coisa. Estou cotidianamente buscando melhorar nesse sentido, mas confesso que retrocedo várias vezes ou cometo o mesmo erro outras tantas, ainda que eu reflita, ore, faça terapia, escreva sobre isso… Se houver algum ser humano que consiga nunca dar uma resposta mais seca; nunca dizer algo desnecessário e que machuque; ou mesmo nunca hesitar em dizer o que tem de ser dito no momento, por favor, me ensine o caminho. 

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A Casa Encantada & À Frente, O Verso.

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