O cérebro, ainda que seja a mais complexa estrutura existente na Terra - talvez no universo - é um objeto bem definido: ele é uma entidade material localizada dentro do crânio, que pode ser visualizado, tocado e manipulado. É composto de substâncias químicas, enzimas e hormônios que podem ser medidos e analisados. Sua arquitetura é caracterizada por células neuronais, vias neurais e sinapses. Seu funcionamento depende de neurônios, os quais consumem oxigênio, trocando substâncias químicas através de suas membranas, e mantendo estados de polarização elétrica interrompidos por breves períodos de despolarização.
Mas... e a MENTE ?
É impressionante verificar que mesmo após vários séculos de refexões filosóficas, árdua dedicação à pesquisa cerebral e notáveis avanços no campo das neurociências, o conceito de mente ainda permanece obscuro, controverso e impossível de definir nos limites de nossa linguagem.
Uma visão fortemente sustentada, é a de que a mente é uma entidade separada do corpo; esta especulação tem suas raízes históricas: teorias antigas, determinaram hipóteses dualísticas da função cerebral, as quais admitiam que o cérebro pode ser visto mecanicamente, mas que a mente é uma entidade com uma característica física não definida. Em tais teorias, a mente era vista como um sinônimo da alma, formando uma parte integrante da cultura religiosa prevalecente. Por exemplo, René Descartes (1596-1650), o filósofo francês, perpetuou o dualismo mente-corpo de Platão (428-348 A .C.), separando filosoficamente a mente e o corpo (1). Ele estimulou o debate "Como a mente não-material influencia o cérebro e vice-versa ?" . Suas idéias permearam visões filosóficas e cientificas até os presentes dias, mudando assim, a abordagem de pesquisa do problema do "eu". Desde que a mente e o cérebro passaram a serem vistos como entidades isoladas, as pesquisas nestas áreas foram, de maneira geral, inerentemente separadas. Bioquímicos têm se preocupado com mecanismos somáticos; psicólogos têm se esforçado com as propriedades subjetivas da mente; filósofos e teólogos trazem com eles o espírito e a alma.
Mente é uma definição que tenta resgatar a essência do homem. A essência de uma pessoa emerge da existência de funções mentais que permitem a ela pensar e perceber, amar e odiar, aprender e lembrar, resolver problemas, comunicar-se através da fala e da escrita, criar e destruir civilizações. Estas expressões estão estreitamente relacionadas ao funcionamento cerebral. Assim, sem o cérebro, a mente não pode existir, sem a manifestção comportamental, a mente não pode ser expressada.
Espírito e alma parecem ser interpretações religiosas e metafísicas da mente. A neurociência tem entendido o cérebro e a mente como resultado da investigação experimental. Aceitação ou rejeição da existência de espírito ou alma depende de fé ou convicção religiosa, as quais não podem ser provadas ou desaprovadas por métodos experimentais. Parece ser mais coerente pensar que crenças são dependentes da atividade fisiológica do cérebro e de nosso ambiente cultural. Nós não podemos ter conceitos religiosos se nós não temos um cérebro funcionante (por ex., como quando a atividade do cérebro é bloqueada por coma ou anestesia profunda), e nós não podemos acreditar em coisas que nós não aprendemos, ouvimos e experenciamos.
Não é impossível pensar que algumas pessoas podem "aprender" a acreditar na existência de Deus, vida após a morte e forças sobrenaturais porque o cérebro é provido com centros emocionais afim de satisfazer necessidades psicológicas.
Eu frequentemente pergunto a mim mesma: "Existe alguma região cerebral envolvida com a experiência mistico-religiosa ? Poderiam lesões ou a ausência daquelas regiões abolir crenças religiosas? Ou, ao contrário, poderiam "tempestades elétricas" (hiperestimulação de circuitos neuronais) provocadas por crises psicóticas ou epilépticas estar atuando em circuitos cerebrais que processam um possível sentimento religioso?"
Os cientistas geralmente são relutantes em combinar trabalho experimental com filosofia, e geralmente rejeitam considerações de possíveis implicações teológicas de seus estudos. Entretanto, poucos estudos neste campo começaram a aparecer. Saver & Rabin (2) encontraram que pistas para o substrato neural da experiência religiosa, experiência próxima da morte e alucinações, podem ser deduzidas da epilepsia límbica (o sistema límbico é descrito como o centro emocional do cérebro). Ramachandran (3) reportou que pacientes com crises do lobo temporal (o lobo temporal está envolvido com muitas funções complexas incluindo emoção e memória) algumas vezes experienciam êxtase religioso durante crises e são intensamente religiosos. Assal & Bindschaedier (4) reportaram um caso de delírio religioso em uma mulher de 39 anos de idade que tinha sofrido de injúria cerebral com concussão temporal direita 13 anos antes.
Poucos neurocientistas, tais como o prêmio Nobel Sir John Eccles, admitem que a mente é distinta do corpo, mas a maioria deles agora acredita que todos os aspectos da mente, os quais são frequentemente equiparados com a consciência, provavelmente são explicados como comportamento e química de células neuronais. Na opinião do famoso neurofisiologista José Maria Delgado (5) "é preferível considerar a mente como uma entidade funcional destituída de implicações metafísicas e religiosas per se e relacioná-la somente à existência de um cérebro e à recepção de inputs sensoriais".
Se o cérebro tem explicado a mente, como explicar os eventos mentais como sendo causados pela atividade de um grande conjunto de células neuronais? Os neurocientistas, timidamente, têm começado a combater a idéia de que esta questão é puramente filosófica ou ilusória para estudar experimentalmente, e estão começando a abordar o problema cientificamente. Eles começaram a ganhar algum entendimento sobre possíveis mecanismos cerebrais que podem ser subjacentes à processos mais complexos na experiência e comportamento humano, tais como o fenômeno da consciência, atenção e pensamento.
Um dos mais notáveis exemplos para ilustrar a relação entre o cérebro e a consciência são os achados que assumem que existem "dois cérebros" em cada cabeça (6), ou seja, cada hemisfério (cada metade do cérebro) é anatomicamente uma imagem em espelho do outro hemisfério, desde que a maioria das estruturas estão presentes em ambos os lados e se comunicam por feixes massivos de fibras. Funcionalmente, entretanto, cada hemisfério tem suas próprias áreas de especialização mental, um fenômeno que nós chamamos de "lateralização cerebral". Por exemplo, o hemisfério esquerdo está mais envolvido com funções verbais e racionais, enquanto o hemisfério direito está relacionado com funções artísticas e visuo-espaciais. As fibras interconectantes exibem um papel importante na coordenação das atividades dos hemisférios; sua lesão pode levar o indivíduo a se comportar como se os dois hemisférios fossem responsáveis por duas conciências separadas, como foi inicialmente notado por R. Sperry (o qual foi consagrado com o prêmio Nobel por isso). Em outras palavras, se a "ponte" entre os dois hemisférios é destruída, um hemisfério não pode saber o que o outro está fazendo.
Outro achado significativo nas neurociências é a correlação de eventos mentais, tais como a aprendizagem, com alterações químicas e estruturais das células nervosas (7). Atualmente, nós sabemos que em nosso cérebro novos ramos neuronais crescem em resposta à diversidade cultural, isto é, ao treino e à experiência do dia-a-dia. Cada neurônio parece contribuir para muitos comportamentos e atividades mentais. Técnicas modernas estão agora começando a revelar como o cérebro tem conseguido a notável proeza da aprendizagem. Redes artificiais de neurônios sobre computadores estão ajudando a explicar a habilidade do cérebro em processar e reter informação. Também, as ciências cognitivas modernas, que utilizam um vasto conjunto de técnicas novas, estão sendo capazes de estudar objetivamente muitos componentes do processo mental, tais como atenção, cognição visual, linguagem, imaginação mental, etc., e estão sendo correlacionadas com atividade neural por meio de imagem funcional computadorizada e estão agora abertas à investigação científica.
Finalmente, nós percebemos não somente o brilho e a fascinação exercida pelas funções mentais humanas, as quais são responsáveis pela criação e evolução de nossa sociedade, mas também a escuridão e o desespero das desfunções mentais, as quais afetam e destroem o ambiente interno e externo do ser humano. Também neste campo, os impressionantes avanços na neurociência e genética estão revelando as bases anatômicas, bioquímicas e hereditárias da esquizofrenia, mania, distúrbios afetivos e do humor, ansiedade, déficits intelectuais, distúrbios da memória e muitos outros (8, 9).
Assim, cada vez mais, estamos percebendo o que muitos influentes filósofos e teólogos dos séculos passados não podiam entender: o cérebro é complexo o suficiente para explicar os mistérios da aprendizagem, memória, emoção, criatividade, consciência, experiência místico-religiosa, loucura. Se nós concordarmos em pensar na mente como se ela fosse um conjunto de funções mentais, mais do que espírito, alma ou substância imaterial, será mais fácil continuar com os necessários estudos empíricos e então um progresso ainda mais substancial poderá ser feito não somente na busca para a natureza do homem como um indivíduo cognitivo, mas também no alívio das doenças mentais e no melhor entendimento de crenças culturais e religiosas, as quais, ao longo dos séculos, têm trazido grandes prazeres - e aflições - à humanidade.
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