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DOIS TURNOS DE SONO: A FORMA ESQUECIDA COMO NOSSOS ANTEPASSADOS DORMIAM - Zaria Gorvett - BBC Future

 

Será que estamos dormindo errado?                                                                                                   Indo contra o que seria nosso ciclo natural de sono?

Eram cerca de 11 horas da noite de 13 de abril de 1699, em uma pequena aldeia no norte da Inglaterra. Jane Rowth, com nove anos de idade, piscava os olhos, observando as sombras da noite escura. Ela e sua mãe haviam acabado de acordar de um curto sono.

A mãe de Jane levantou-se e andou até a lareira daquela casa simples, onde começou a fumar seu cachimbo. Foi quando dois homens surgiram na janela. Eles chamaram a sra. Rowth para se aprontar e ir com eles.

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Como Jane explicou mais tarde para o tribunal, sua mãe claramente estava esperando os visitantes. Ela foi com eles sem resistir - mas antes sussurrou para sua filha: "fique deitada e estarei de volta pela manhã". Talvez a sra. Rowth tivesse alguma tarefa noturna a cumprir. Ou talvez ela estivesse em dificuldades e sabia que encontraria perigos ao sair de casa.

De qualquer forma, a mãe de Jane não conseguiu cumprir sua promessa e nunca mais voltou para casa. Naquela noite, a sra. Rowth foi brutalmente assassinada e seu corpo foi encontrado dias depois. O crime nunca foi esclarecido.


Cerca de 300 anos depois, no início dos anos 1990, o historiador Roger Ekirch visitou o Escritório de Registros Públicos de Londres - um imponente edifício gótico, com belos arcos de entrada, que abrigou os Arquivos Nacionais do Reino Unido entre 1838 e 2003. Foi ali que, entre fileiras quase infinitas de documentos e manuscritos antigos, ele encontrou o depoimento de Jane Rowth.

Ekirch estava originalmente pesquisando para escrever um livro sobre a história das horas noturnas e, naquela época, buscava registros do período entre o início da Idade Média e a Revolução Industrial.

Ele havia descoberto que os depoimentos judiciais são muito esclarecedores. "Eles são uma fonte maravilhosa para historiadores sociais", afirma Ekirch, que é professor da Universidade Estadual da Virgínia, nos Estados Unidos. "Eles comentam sobre atividades muitas vezes não relacionadas ao crime propriamente dito."

Ekirch receava ter que escrever o capítulo do seu livro sobre o sono. Ele acreditava que o sono fosse não só uma necessidade universal, mas uma constante biológica, e não esperava encontrar nada de novo sobre o tema - até que um ponto estranho do testemunho de Jane Rowth o impressionou.

Ao ler o depoimento, ele encontrou duas palavras que nunca havia visto antes, mas que pareciam retratar um detalhe particularmente intrigante da vida no século 17: "primeiro sono".

"Posso recitar o documento original de cor quase inteiro", afirma Ekirch. Sua euforia com a descoberta ainda pode ser percebida, mesmo décadas depois.

Na Idade Média, era absolutamente normal que várias pessoas dormissem juntas. Viajantes que haviam acabado de se conhecer compartilhariam a mesma cama, bem como patrões e seus servos

No seu testemunho, Jane descreve como, pouco antes dos homens chegarem à sua casa, ela e sua mãe haviam acordado do primeiro sono da noite. Não havia mais explicações - o sono interrompido era indicado como sendo algo comum e totalmente sem importância. "Ela se referiu ao caso como se fosse absolutamente normal", afirma Ekirch.

A existência de um primeiro sono indica que havia também um segundo sono - uma noite dividida em duas metades. Era apenas um hábito familiar ou haveria algo mais, além disso?

Pelos meses que se seguiram, Ekirch vasculhou os arquivos e encontrou muitas outras referências sobre esse fenômeno misterioso do duplo sono, ou "sono bifásico", como ele viria a denominá-lo.

Alguns relatos eram um tanto banais, como a menção feita pelo tecelão Jon Cokburne, que simplesmente o citou de passagem no seu depoimento. Mas outros eram mais sombrios, como o de Luke Atkinson, de East Riding of Yorkshire, no norte da Inglaterra. Certa vez, ele cometeu um assassinato no início da manhã, entre os dois sonos - e sua esposa declarou que, muitas vezes, ele usava esse intervalo para ir até as casas de outras pessoas para realizar atos sinistros.

Quando Ekirch ampliou sua pesquisa, incluindo bancos de dados online de outros registros escritos, logo ficou claro que o fenômeno era mais comum e difundido que ele havia imaginado.


Para começar, o primeiro sono é mencionado em uma das obras mais famosas da literatura medieval, The Canterbury Tales ("Os contos da Cantuária", em português), de Geoffrey Chaucer (escritos entre 1387 e 1400). O livro apresenta um concurso de contar histórias entre um grupo de peregrinos.

Existe também uma menção no livro Beware the Cat ("Cuidado com o gato", em tradução livre), do poeta William Baldwin (1561) - um livro satírico considerado por alguns o primeiro romance já escrito. Ele conta a história de um homem que aprende a linguagem de um grupo de gatos sobrenaturais assustadores. Um deles, chamado Mouse-slayer ("Assassino de Camundongos", em tradução livre), enfrenta julgamento por promiscuidade.

Mas isso é apenas o começo. Ekirch encontrou referências casuais ao sistema de sono em duas partes em todas as formas escritas que se pode imaginar - centenas de cartas, diários, livros médicos, escritos filosóficos, artigos de jornal e peças de teatro. A prática aparece até em canções da época, como na balada Old Robin of Portingale: "... e, ao acordar do seu primeiro sono, você precisa tomar uma bebida quente; e, ao acordar do sono seguinte, suas mágoas se acalmarão..."

E o sono bifásico também não era exclusivo da Inglaterra. Ele era amplamente praticado em todo o mundo pré-industrial. Na França, o sono inicial era chamado de "premier somme", enquanto, na Itália, era o "primo sonno".

De fato, Roger Ekirch encontrou evidências do hábito até em locais distantes como a África, sul e sudeste asiático, Austrália, Oriente Médio - e no Brasil. Um registro colonial do Rio de Janeiro, datado de 1555, descreve que o povo tupinambá costumava comer depois do seu primeiro sono.

Como muitos romanos, o historiador Lívio praticava o sono bifásico. Ele menciona o método na sua obra-prima, “A história de Roma”

Já um registro de Mascate, em Omã, explicava no século 19 que os habitantes locais se recolhiam para seu primeiro sono antes das 22 horas.

E Ekirch começou a suspeitar que esse método, longe de ser uma peculiaridade da Idade Média, poderia ter sido a principal forma de dormir por milênios - um padrão antigo herdado dos nossos ancestrais pré-históricos. O registro mais antigo encontrado por Ekirch foi do século 8 antes de Cristo, no épico grego A Odisseia, enquanto as indicações mais recentes dessa prática datam do início do século 20, quando, de alguma forma, ela caiu no esquecimento.

Como isso funcionava? Por que as pessoas dormiam em dois turnos? E como algo que um dia foi tão comum acabou sendo completamente esquecido?


Era um momento vago

No século 17, a noite de sono era mais ou menos assim:

Das 21 às 23 horas, as pessoas que tinham condições começavam a recostar-se em colchões forrados com palha ou trapos (os colchões dos ricos poderiam ter enchimento de penas), prontas para dormir por duas horas. Enquanto isso, nas camadas inferiores da sociedade, as pessoas precisavam acomodar-se sobre plantas espalhadas no solo ou, pior, no chão de terra batida - talvez até sem cobertor.

Naquela época, muitas pessoas dormiam juntas, frequentemente acompanhadas de uma acolhedora variedade de percevejos, pulgas, piolhos, familiares, amigos, servos e - se estivessem viajando - também completos estranhos.

Para minimizar constrangimentos, o sono envolvia uma série de convenções sociais rígidas, como evitar contato físico ou muitos movimentos durante a noite. E havia posições definidas para dormir. As meninas mais jovens, por exemplo, normalmente deitavam-se em um lado da cama, com as mais velhas mais perto da parede, seguidas pela mãe e pelo pai, depois os filhos meninos - também dispostos por idade - e os que não eram membros da família depois deles

Duas horas depois, as pessoas começavam a despertar desse sono inicial. O tempo acordado à noite normalmente começava perto de 23 horas e ia até cerca de uma hora da manhã, dependendo do horário em que as pessoas haviam ido para a cama.

Esse despertar geralmente não era causado por ruídos, nem por outras perturbações à noite. Também não havia alarme para despertar - os despertadores foram inventados apenas em 1787, por um norte-americano que, ironicamente, precisava acordar no horário para vender relógios. As pessoas acordavam de forma totalmente natural, da mesma forma que faziam pela manhã.

O período acordado era chamado de "vigília" e era um intervalo surpreendentemente útil para realizar tarefas. "[Os registros] descrevem que as pessoas faziam quase de tudo depois que acordavam do primeiro sono", relata Ekirch.

Dormir em conjunto significava que as pessoas normalmente tinham alguém com quem falar quando acordavam para a “vigília”.

Sob o fraco brilho da Lua, das estrelas, lâmpadas a óleo ou "velas de junco" - uma espécie de vela para residências simples, feita de caules de junco encerados - as pessoas se dedicavam a tarefas comuns, como colocar lenha no fogo, tomar remédios ou urinar (muitas vezes, no próprio fogo).


Para os camponeses, acordar significava voltar ao trabalho mais sério - seja sair para vistoriar os animais de criação ou realizar tarefas domésticas, como remendar roupas, pentear lã ou descascar os juncos a serem queimados. Ekirch encontrou o relato de um servo que certa vez chegou a preparar um lote de cerveja para seu patrão entre meia-noite e duas horas da manhã, em Westmorland, no noroeste da Inglaterra.

Para os cristãos, havia orações elaboradas a cumprir, incluindo algumas especificamente recomendadas para esse período. Um padre chamou a vigília de a hora mais "proveitosa" do dia - depois de digerir o seu jantar e encerrar as tarefas mundanas, "ninguém virá procurar você, exceto Deus".

Já as pessoas com disposição para a filosofia poderiam usar a vigília como um momento pacífico para ruminar sobre a vida e ponderar sobre novas ideias. No final do século 18, um comerciante londrino chegou a inventar um dispositivo especial para registrar suas percepções noturnas mais ardentes - um "lembrador noturno", que consistia de um bloco de pergaminho fechado com uma abertura horizontal que poderia ser usada como guia para escrever.

Mas, principalmente, a vigília era útil para a socialização - e para o sexo. Como explica Ekirch em seu livro, At day's close: A history of nighttime ("No encerramento do dia: a história das horas noturnas", em tradução livre), as pessoas muitas vezes sentavam-se na cama e apenas conversavam. E, durante essas estranhas horas de penumbra, as pessoas que dividiam a cama conseguiam compartilhar um nível de informalidade e conversas casuais dificilmente atingido durante o dia.

E, para os casais que conseguissem vencer a logística de compartilhar a cama com outras pessoas, era também um intervalo conveniente para intimidade física. Depois de um longo dia de trabalho manual, o primeiro sono eliminava sua exaustão e o período seguinte era considerado um excelente momento para conceber sua enorme quantidade de filhos.

Depois que as pessoas ficavam acordadas por duas horas, normalmente elas voltavam para a cama. Esse segundo período era considerado o sono "da manhã" e poderia durar até amanhecer ou mais. Da mesma forma que acontece hoje, a hora em que as pessoas finalmente acordavam para o dia dependia da hora em que elas foram para a cama à noite.

Pessoas pesquisando no Escritório de Registros Públicos

O Escritório de Registros Públicos abrigava milhares de depoimentos criminais da era medieval, que agora são guardados nos Arquivos Nacionais em Kew, a sudoeste de Londres

Adaptação antiga

Segundo Ekirch, existem referências ao sistema de sono em dois períodos espalhadas ao longo de toda a Antiguidade, o que indica que ele já era comum naquela época.

O sistema é mencionado casualmente em obras de escritores ilustres, como o biógrafo grego Plutarco (século 1 depois de Cristo), o viajante grego Pausânias (século 2 depois de Cristo), o historiador romano Lívio e o poeta romano Virgílio.

Posteriormente, a prática foi adotada pelos cristãos, que imediatamente perceberam o potencial da vigília como uma oportunidade para recitar salmos e fazer confissões. No século 6, São Bento ordenava aos monges que se levantassem à meia-noite para essas atividades e essa ideia acabou por espalhar-se por toda a Europa, gradualmente chegando à população em geral.

Mas os seres humanos não são os únicos animais a descobrir os benefícios de dividir o sono. Essa prática é amplamente adotada no mundo natural, com muitas espécies repousando em dois ou até mais períodos de sono separados. Isso os ajuda a permanecer ativos nas horas mais benéficas do dia, quando eles têm maior possibilidade de encontrar alimento, sem que eles próprios se tornem o lanche de alguém.

Um exemplo é o lêmure-de-cauda-anelada. Esses icônicos primatas de Madagascar, com seus olhos vermelhos arrepiantes e caudas verticais em preto e branco, mantêm padrões de sono surpreendentemente similares aos dos seres humanos da era pré-industrial. Eles são "catemerais", ou seja, eles ficam acordados durante a noite e o dia.

"Existem muitas variações entre os primatas, em termos da distribuição da sua atividade ao longo do período de 24 horas", afirma David Samson, diretor do laboratório do sono e evolução humana da Universidade de Toronto em Mississauga, no Canadá. E, se o sono em dois períodos é natural para os lêmures, ele se pergunta: pode ser esta a forma em que nós também evoluímos para dormir?

Roger Ekirch vinha alimentando o mesmo pressentimento há muito tempo. Mas ele passara décadas sem encontrar nada de concreto que o comprovasse - nem que esclarecesse por que essa prática desapareceu. Até que, em 1995, Ekirch leu uma reportagem no The New York Times sobre um experimento do sono realizado alguns anos antes.

A pesquisa foi conduzida por Thomas Wehr, cientista do sono do Instituto Nacional de Saúde Mental dos Estados Unidos, e envolveu 15 homens. Depois de uma semana inicial de observação dos seus padrões de sono normais, eles foram mantidos sem iluminação artificial à noite para reduzir suas horas de "luz do dia" - seja ela natural ou elétrica - das 16 horas habituais para apenas 10.

No restante do tempo, eles foram confinados em um quarto sem luz nem janelas e totalmente imersos na escuridão envolvente. Eles não podiam ouvir música nem se exercitar - e foram induzidos ao repouso e ao sono.

O historiador Roger Ekirch se pergunta se hoje as pessoas conseguem se lembrar menos de seus sonhos que os nossos ancestrais porque agora é menos comum acordar no meio da noite

No início do experimento, todos os homens tinham hábitos noturnos normais - eles dormiam em um turno contínuo que durava do final da noite até a manhã. Mas algo incrível aconteceu em seguida.

Depois de quatro semanas de dias com 10 horas, os padrões de sono dos participantes haviam se transformado. Eles não dormiam mais em um único período, mas em duas metades, aproximadamente com a mesma duração. As duas partes eram separadas por um período de uma a três horas que eles passavam acordados.

Medições do hormônio do sono - a melatonina - demonstraram que seus ritmos circadianos também haviam se ajustado, o que demonstra que seu sono foi alterado em nível biológico.

Wehr havia reinventado o sono bifásico. "Depois do meu casamento e do nascimento dos meus filhos, foi provavelmente o momento mais emocionante da minha vida", relembra Ekirch. Quando ele escreveu para Wehr explicando a extraordinária coincidência entre o estudo científico e a sua pesquisa histórica, "acho que posso afirmar que ele ficou tão radiante quanto eu", afirma.

Mais recentemente, a própria pesquisa de David Samson foi confirmada por essas descobertas - mas com uma fascinante reviravolta.

Em 2015, Samson recrutou voluntários locais da remota comunidade de Manadena, no nordeste de Madagascar, para um estudo em conjunto com colaboradores de diversas outras universidades. O local é uma aldeia grande, ao lado de um parque nacional. Não há infraestrutura elétrica, de forma que as noites locais são quase tão escuras quanto eram milênios atrás.

Pediu-se aos participantes - em sua maioria, agricultores - que usassem um "actímetro" - um sofisticado dispositivo sensor de atividade que pode ser usado para rastrear ciclos de sono - por 10 dias, para verificar seus padrões de sono.

"Descobrimos que [nas pessoas privadas de luz artificial] havia um período de atividade logo após a meia-noite até cerca de 1h a 1h30 da manhã", afirma Samson, "a atividade era reduzida em seguida até o sono e a inatividade [permanecia] até que eles acordassem, às seis horas, o que normalmente coincide com o nascer do sol".

Ou seja, o sono bifásico nunca desapareceu completamente - ele sobrevive até hoje nos bolsões mais distantes do mundo.


Nova pressão social

Coletivamente, essa pesquisa também forneceu a Ekirch a explicação que ele desejava sobre o motivo que levou a maior parte da humanidade a abandonar o sistema de dois períodos de sono a partir do início do século 19. Como ocorreu com outras mudanças recentes do nosso comportamento, como a dependência do relógio, a resposta era a Revolução Industrial.

"A iluminação artificial tornou-se mais presente e sua potência aumentou - primeiro, foi [a iluminação] a gás, introduzida pela primeira vez em Londres", explica Ekirch, "e depois, claro, a iluminação elétrica, mais para o final do século. Além de alterar o ritmo circadiano das pessoas, a iluminação artificial também permitiu naturalmente que as pessoas ficassem acordadas até mais tarde."

Mas, embora as pessoas não fossem mais para a cama às 21 horas, elas ainda precisavam acordar no mesmo horário pela manhã - o que prejudicava o seu repouso. Ekirch acredita que isso tornou seu sono mais profundo, porque era reduzido.

Além de alterar os ritmos circadianos da população, a iluminação artificial prolongou o primeiro sono e reduziu o segundo. "E consegui rastrear [essas alterações], quase a cada década, ao longo do século 19", afirma Ekirch.

Curiosamente, o estudo de Samson em Madagascar envolveu uma segunda parte - na qual a metade dos participantes recebeu luzes artificiais por uma semana, para ver se elas causavam alguma diferença. E, neste caso, os pesquisadores concluíram que não havia impacto sobre os seus padrões de sono segmentados. Mas eles indicam que uma semana pode não oferecer tempo suficiente para que as luzes artificiais causem mudanças importantes - de forma que o mistério continua...

Mesmo que a iluminação artificial não seja a única causa, no final do século 20, a divisão entre dois períodos de sono havia desaparecido por completo. A Revolução Industrial não havia mudado apenas a nossa tecnologia, mas também a nossa biologia.

Nova ansiedade

Um efeito colateral importante da mudança dos hábitos de sono de grande parte da humanidade foi uma mudança de comportamento. Por um lado, começamos rapidamente a ridicularizar as pessoas que dormem demais e desenvolvemos preocupação com a relação entre acordar cedo e a produtividade.

Mas, para Ekirch, "o aspecto mais gratificante de tudo isso são as pessoas que sofrem de insônia no meio da noite". Ele explica que nossos padrões de sono agora estão tão alterados que ficar acordado no meio da noite pode nos causar pânico.

"Não quero diminuir a importância disso - eu mesmo, na verdade, sofro de distúrbios do sono e tomo medicamentos para isso." Mas, quando as pessoas aprendem que esse padrão pode ter sido totalmente normal por milênios, ele percebe que isso reduz um pouco a ansiedade.

Mas, antes que a pesquisa de Ekirch gere uma derivação da dieta paleolítica e as pessoas comecem a jogar suas lâmpadas fora - ou, pior, dividam artificialmente seu sono em dois com despertadores -, ele se empenha em ressaltar que o abandono do sistema de sono em dois períodos não significa que a qualidade do nosso sono hoje em dia seja inferior.

Apesar das notícias quase constantes sobre a grande incidência de distúrbios do sono, Ekirch já argumentou que, em alguns aspectos, o século 21 é a era de ouro do sono - um período em que a maioria de nós não precisa mais se preocupar em ser assassinado na cama, congelar até a morte ou remover piolhos, podendo dormir sem dores, sem a ameaça de incêndios e sem estranhos deitados ao nosso lado.

Em resumo, o sono em um único período pode não ser "natural", da mesma forma que belos colchões ergonômicos e a higiene moderna também não o são. "Ou seja, não existe retorno porque as condições mudaram", afirma Ekirch.

Nós podemos estar perdendo a oportunidade de ter conversas confidenciais na cama no meio da noite, sonhos psicodélicos e revelações filosóficas noturnas - mas, pelo menos, não acordamos cobertos de picadas vermelhas irritantes.

* Zaria Gorvett é jornalista sênior da BBC Future. Sua conta no Twitter é @ZariaGorvett.

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SONO: UMA FAXINA NOTURNA - Suzana Herculano-Houzel

O sono não é apenas “o outro” estado 
de funcionamento do cérebro,
 mas uma necessidade básica 
para que o cérebro trabalhe direito quando acordado

Dormimos cerca de oito horas por noite, todas as noites (ou quase). E se não dormimos, as consequências são imediatas: fadiga mental, dificuldade de encontrar as palavras, de fazer contas de cabeça, de se manter atento, de tomar decisões. Fica óbvio que o sono não é apenas “o outro” estado de funcionamento do cérebro, mas uma necessidade básica para que o cérebro trabalhe direito enquanto acordado da próxima vez. Até mesmo consolidar o aprendizado do dia – ou seja, transferir informações de maneira duradoura para a memória – depende de sono naquela noite.

Mas nada disso explica por que dormimos. Por que é mandatório dormir, a ponto de a insônia completa e permanente acabar sendo letal a humanos, camundongos e até mesmo moscas?

Foi apenas no final de 2013 que a neurociência finalmente teve uma forte candidata a resposta, vinda do laboratório da Dra. Maiken Nedergaard, nos EUA: o sono parece ser a oportunidade do cérebro para que metabólitos (quer dizer, produtos do metabolismo normal do cérebro) potencialmente tóxicos sejam eliminados, permitindo às células começar um novo dia limpas, ao invés de nadando em suas próprias excreções.

O interesse inicial da equipe de Maiken Nedergaard não era o sono em si, mas estudar o espaço intersticial do cérebro: o volume situado do lado de fora das células, por onde circula o líquido que banha as células e “lava” embora tudo aquilo que elas excretam, inclusive os tais metabólitos. Para estudar o espaço intersticial, a equipe injetava um corante que se espalhava por esse espaço no cérebro de camundongos acordados sob o microscópio, com seu cérebro exposto por uma janela implantada no crânio.

O experimento devia ser um tanto monótono para os animais, pois estes acabavam adormecendo. Foi o que levou à descoberta. Com o animal acordado, o corante injetado ficava apenas na superfície do cérebro. Mas, para a surpresa dos pesquisadores, assim que o animal adormecia, era como se uma torneira de corante houvesse sido aberta: o líquido agora se espalhava rapidamente pelo espaço intersticial.

Investigando o fenômeno inesperado, a equipe demonstrou que a circulação de líquido pelo espaço intersticial é mínima no cérebro acordado, quando o espaço interesticial é reduzido. Mas a transição para o sono leva a uma expansão de 60% desse espaço, o que aumenta enormemente a circulação de líquido. Na prática, o resultado é que a remoção de toxinas produzidas pelo funcionamento das células essencialmente só ocorre durante o sono; no cérebro acordado, com pouca circulação de líquido, elas vão se acumulando.

Ao menos um desses metabólitos, aliás, é forte candidato justamente a fator causador do sono: adenosina, produzida e liberada por neurônios e células gliais durante o funcionamento do cérebro acordado. Quanto mais adenosina se acumula, mais difícil fica se manter acordado, motivado e atento – e maior é a sensação de sonolência. É fácil pensar em como o cérebro, acordado, fica gradualmente prejudicado conforme se acumulam os produtos tóxicos do seu próprio funcionamento, como a própria adenosina. Quanto mais tempo se passa acordado, mais difícil é continuar acordado – e mais forte, portanto, é a tendência a adormecer.

Dormir parece ser a solução para o problema: um estado transitório, mas obrigatório, repetido todos os dias após um certo número de horas acordado, acumulando lixo. Dormir limpa o cérebro, levando embora adenosina e o que mais houver se acumulado. 
E assim você acorda pronto para... começar tudo de novo.
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Contos, Crônicas e Poesias









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MEMÓRIA, SONO, SONHOS E PESADELOS - Sidarta Ribeiro

Neurocientista da Universidade de Nova York deve voltar à China se Estados Unidos cortarem os investimentos em pesquisas; no Brasil, redução foi de 50%

Os genes ativados por atividade neuronal foram descobertos nos anos 1980. Estes genes respondem tão rapidamente a um estímulo que isso lhes valeu o nome de genes imediatos. Vários desses genes medeiam mudanças morfológicas nos dendritos e axônios neuronais. 

Tais mudanças no formato, tamanho e quantidade de sinapses são capazes de criar memórias duradouras. 

Por essa razão, em meados dos anos 1990 foram iniciados experimentos para verificar se os efeitos positivos do sono sobre a memória seriam causados pela ativação de genes imediatos durante o sono.

Os primeiros experimentos couberam aos neurocientistas Giulio Tononi e Chiara Cirelli, com resultados opostos à hipótese: os genes imediatos pareciam ser desativados pelo sono. Isso levou os pesquisadores a propor que o fortalecimento sináptico ocorre exclusivamente durante a vigília, sendo função do sono enfraquecê-la, o que impediria a saturação e propiciaria a ocorrência de mais aprendizado na vigília seguinte. 

Essa teoria foi chamada de hipótese da homeostase sináptica do sono, pois o excesso de fortalecimento sináptico durante a vigília seria equilibrado pelo enfraquecimento sináptico generalizado durante o sono.

Mas isso não é tudo. Em 1995 iniciei experimentos semelhantes aos de Tononi e Cirelli, mas com duas diferenças importantes. 

Em primeiro lugar, implantei eletrodos nos cérebros dos animais para separar escrupulosamente as duas fases principais do sono, i.e., o sono de ondas lentas e o sono REM. 

Em segundo lugar, comparei animais expostos a estímulos novos com animais não expostos. Os resultados mostraram que o sono de ondas lentas efetivamente desativa genes imediatos, independentemente da experiência prévia do animal. 

O sono REM, por outro lado, tem efeitos distintos dependendo da experiência prévia do animal. Em animais não expostos o sono REM desativa genes imediatos, mas em animais expostos o sono REM ativa os mesmos genes. 

Esses resultados foram publicados em 1999 e desde então vários laboratórios diferentes observaram efeitos compatíveis com a noção de que o sono REM ativa genes imediatos e fortalece sinapses em alguns neurônios mas não em outros, criando memórias persistentes através de um processo que chamei de entalhamento sináptico.

Por quase duas décadas as duas teorias se confrontaram, com uma longa série de publicações de cada lado, mas atitudes opostas quanto ao campo adversário. Enquanto a teoria de entalhamento sináptico se apoiou nos estudos de Tononi e Cirelli para atribuir ao sono de ondas lentas o papel de enfraquecimento sináptico, a teoria da homeostase sináptica ignorou as evidências contrárias, não deixando lugar para o sono REM nem para o aprendizado durante o sono. 

Foi somente em 2014 que Tononi e Cirelli citaram pela primeira vez as publicações inconsistentes com sua teoria, mas mesmo assim sob o argumento de que a ativação de genes imediatos é uma evidência indireta...

No início de 2017, o neurocientista Wenbiao Gan e sua equipe na Universidade de Nova York publicaram na revista Nature Neuroscience os resultados de experimentos inovadores, em que utilizaram microscopia avançada para medir sinapses específicas no cérebro de camundongos. 

Os resultados mostraram evidências diretas do fortalecimento de sinapses pelo sono REM após exposição a novo aprendizado. Entrei em contato com o Dr. Gan para parabenizá-lo pela pesquisa e estamos planejando uma colaboração.


Numa das conversas que tivemos, Gan disse que pretende regressar à China se Trump realmente vier a cortar o orçamento da pesquisa. Aqui o governo reduziu o orçamento da ciência e tecnologia em quase 50% e não se vê luz no fim do túnel. 

Pesquisar no Brasil é um sonho, mas sofrer ataque tão brutal à ciência tem sido um pesadelo.

SONO, OBESIDADE E DIABETES - Drauzio Varella

Inquéritos epidemiológicos avaliaram os efeitos deletérios que a privação crônica de sono exerce.

Vivemos numa cultura que tem orgulho de dormir pouco. Pessoas que dormem nove horas por dia são consideradas preguiçosas, enquanto admiramos as que em cinco ou seis já pularam da cama.

Nos 5 milhões de anos que nos precederam, nossa espécie viveu num mundo sem luz elétrica, em que a rotina de sono e vigília era organizada em conformidade com a alternância dos dias e das noites.

A claridade que chegava às células fotossensíveis da retina ao raiar do sol estimulava as áreas cerebrais responsáveis pelo controle da divisão celular, da produção dos hormônios e das proteínas envolvidas nas reações metabólicas necessárias para enfrentar a luta diária.

Ao contrário, a chegada da noite alterava o metabolismo de forma a sintetizar novas proteínas e hormônios, neurotransmissores, melatonina e outros mediadores para nos tornar mais contemplativos, com a musculatura mais relaxada e predispostos a achar um canto na caverna para entrarmos em modo de hibernação.

Na evolução, em respeito a essa ordem natural, o conjunto das reações bioquímicas responsáveis pelo metabolismo dos animais -e também das plantas, fungos e bactérias- organizou-se em ciclos diários com duração aproximada de 24 horas, característica que na década de 1950 recebeu o nome de ritmo circadiano (do latim: "circa diem", cerca de um dia).

Embora os ciclos circadianos sejam controlados por mecanismos endógenos autoajustáveis, independentes da consciência, fatores externos podem interferir na sua duração. Entre eles, o mais importante é a luz do sol ou de fontes artificiais, especialmente as que emitem a banda azul do espectro luminoso.

Seres humanos mantidos em penumbra silenciosa durante 28 horas não resistem em vigília. A interferência com a duração dos dias e das noites que subverte a alternância da exposição à claridade e à escuridão é a causa do fenômeno conhecido como jet lag.

Inquéritos epidemiológicos realizados nos últimos 20 anos avaliaram os efeitos deletérios que a privação crônica de sono exerce sobre a saúde humana. Alguns deles levantaram a suspeita de que dormir pouco encurtaria a longevidade.

Em 2010, um estudo realizado no Women's Hospital, em Boston, revelou que homens jovens mantidos em regime de privação de sono por apenas uma semana desenvolvem resistência à insulina, condição que leva ao aumento da concentração de glicose no sangue, característica do diabetes. Os autores desse estudo acabam de atualizá-lo em uma publicação na revista "Science Translational Medicine".

Durante seis semanas, mantiveram 21 participantes numa das suítes que o hospital transformou em laboratório de estudo do sono. Todos foram mantidos num regime que lhes permitia dormir apenas cinco, seis horas, a cada período de 24.

O horário de ir para cama mudava todos os dias. Para interferir com o ritmo circadiano, os quartos não tinham janelas, e os ciclos de luz e escuro foram programados para durar 28 horas, em vez das 24 habituais.

Com o objetivo de prevenir que o ritmo circadiano se reajustasse por conta própria, a iluminação era mantida em níveis equivalentes ao do entardecer. Não foi permitido acesso a TV, rádio ou internet.

Amostras de sangue colhidas em jejum acusaram concentrações mais baixas de insulina, associadas ao aumento das taxas de glicose, em todos os participantes. Em três deles, a glicemia atingiu a faixa que vai de cem a 120, rotulada de pré-diabetes.

A energia gasta em repouso (que quantifica quantas calorias consome o corpo parado) caiu em média 8%. Se esse nível de consumo energético mais econômico fosse mantido por um ano, causaria um aumento do peso corpóreo de quase seis quilos.

Depois de um período de dez dias de recuperação, em que os participantes permaneceram no laboratório, porém mantidos em ciclos de claro e escuro com duração de 24 horas, mas dormindo dez horas durante a noite, a secreção de insulina e os níveis de açúcar na circulação voltaram aos valores normais.

Para aqueles que o trabalho obriga a passar meses ou anos em ciclos de dia e noite irregulares, essas alterações seriam igualmente reversíveis?

Você consegue, leitor, dormir e acordar todos os dias na mesma hora? 
Eu, não.

A Casa Encantada & À Frente, O Verso.

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Livros de Edmir Saint-Clair

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