Todas as vezes em que acabo de redigir um texto para este blog, fico tensa. Não (só) com a repercussão do que acabei de escrever, mas sobretudo com a decisão sobre o que escreverei a seguir. Fico matutando, pensando em frases. Anoto ideias em qualquer pedaço de papel. Se não há como anotar, faço esforço para manter o pensamento trancafiado na mente, lembrando-me dele várias vezes, até que ele possa ser libertado num bloco de anotações, no computador, no celular. Minha escrita não é automática. Não tenho esse talento. Ela é cozida em banho-maria. Para esta semana, estava tudo assim, alinhavado. Mas terei que deixar o rascunho de lado e me atirar na escrita imediata. Porque a vida assim pediu.
Estava na Hungria. Fim de semana em Budapeste, calor de 38 graus. Uma cidade linda, que chama a atenção de sua câmera fotográfica o tempo todo. Antes de um passeio de barco, o vendedor de bilhetes quis saber de onde vínhamos. “Oh, Brasil. São Paulo? Eu ouvi que as taxas de criminalidade são enormes lá, não?” E novamente entra em cena o brasileiro expatriado, que se esforça para quebrar ao menos um pouco os estigmas do Brasil: “Mais ou menos, mas não é exatamente um terror…”. A conversa me fez lembrar da última ida ao Brasil. No táxi, em São Paulo, a caminho de casa, à noite, tive medo de que um assaltante viesse de carro, batesse no vidro e desse um tiro. Nunca tinha tido essa sensação, nem havia motivo especial para esse sentimento naquele momento. Estranhei.
Estava na Hungria. Fim de semana em Budapeste, calor de 38 graus. Uma cidade linda, que chama a atenção de sua câmera fotográfica o tempo todo. Antes de um passeio de barco, o vendedor de bilhetes quis saber de onde vínhamos. “Oh, Brasil. São Paulo? Eu ouvi que as taxas de criminalidade são enormes lá, não?” E novamente entra em cena o brasileiro expatriado, que se esforça para quebrar ao menos um pouco os estigmas do Brasil: “Mais ou menos, mas não é exatamente um terror…”. A conversa me fez lembrar da última ida ao Brasil. No táxi, em São Paulo, a caminho de casa, à noite, tive medo de que um assaltante viesse de carro, batesse no vidro e desse um tiro. Nunca tinha tido essa sensação, nem havia motivo especial para esse sentimento naquele momento. Estranhei.
Na volta para Praga, cidade em que caminho pela rua à meia-noite sem nenhuma preocupação, botei a culpa na tranquilidade daqui para a minha paranoia naquela noite em São Paulo. Num lugar em que os caixas eletrônicos ficam nas calçadas, sem proteção, em que o perigo maior são, segundo os locais, os batedores de carteira, talvez tenha relaxado demais. Ainda seguro a bolsa com força, mas não olho para trás sempre que ando na rua e já me arrisquei a levantar da cadeira na biblioteca, deixando o computador ali, como todos os outros fazem, enquanto vou ao banheiro. Confesso também que tive medo de voltar à mesa e não achar mais nada.
Mas o fato é que eu nunca fui assaltada em São Paulo. E os batedores de carteira nunca me pegaram em Praga. Tudo mudou em Budapeste. Foi ali, mas poderia ter sido em outro lugar. Eu não me engano. Para que você entenda por que digo isso, vou começar a história pelo final. Depois de tudo, ouvi a seguinte frase: “Na vida, você não ganha sempre”. Isso não tem a ver com a cidade em que você está. Tem a ver com a vida.
Estávamos no lobby de um hotel, o Courtyard, tomando algo gelado no bar (calor de 38 graus, lembra-se?) enquanto esperávamos o horário de pegar o trem. Na saída, demos falta da mochila. Sumiu. Como? Foram olhar as fitas de segurança. Um ladrão levou. Como? As câmeras não pegaram toda a ação do ladrão, me disse o gerente. E não pudemos ver as imagens, pela lei húngara. Eram quatro pessoas na mesa. Ninguém viu ninguém se aproximando.
Nenhum funcionário do hotel notou algo. Evaporou-se, com nossas passagens de volta, nossas fotos da viagem…
Imagino que o sentimento que venha após o roubo seja semelhante para todos. Uma explosão de contradições: raiva do ladrão, raiva do hotel, raiva de si mesmo, tristeza, ódio, pesar, medo, sensação de invasão, de fracasso, de insegurança, alegria por ninguém ter se machucado e por aí vai. Depois de sentir esse turbilhão, minha primeira reação foi: como você, que vem do Brasil, acostumada a temer coisa pior, pôde ser feita de boba assim. Minha segunda reação foi: não quero viajar mais, tenho medo de acontecer de novo, e agradeço porque não me machuquei. Minha terceira reação acontece agora: ninguém está imune a isso.
Por aqui, a desigualdade não é tão grande quanto no Brasil, e acredito fortemente que isso seja uma grande razão para a baixa criminalidade. Como jornalista, já vi muitas crianças morando em casas feitas com papelão e madeira, com mais buracos que paredes, e que sentem o cheiro do esgoto que passa ao lado o dia inteiro, por anos. Digo, sinceramente, que não me espanto se essa criança começar a roubar. Não se trata de uma justificativa. Como bem sabemos, a miséria nem sempre gera violência. Não quer dizer que não ficarei possessa se isso acontecer comigo, que não vou ter raiva. Mas não podemos negar a revolta que essa situação pode alimentar nessa criança. Só que aqui, sem favelas, sem meninos cheirando cola na rua, sem mulheres com bebê de colo embaixo de viadutos, a criminalidade é também muito crua.
Ok. Aqui, ninguém aponta arma para sua cabeça, eu sei (ou, pelo menos, é mais raro que no Brasil). A “tecnologia” do sequestro-relâmpago, da saidinha de banco e de outros crimes não se estabeleceu por aqui. Eu sei. E sei que isso é bom. Mas o espanto que essa situação me causou foi intenso e me modificou. Você pode dizer que isso ocorreu porque foi a primeira vez que levaram algo meu. Concordo, mas percebo que não foi só isso. Porque o ladrão bem vestido que entrou sem despertar a atenção no lobby do hotel e levou minha câmera não fez isso porque precisava comer. Nem precisava de trocado para comprar “pedra” na cracolândia de Budapeste. E, provavelmente, não tenha certeza da impunidade. Talvez tenha feito isso porque o ser humano tem um lado ruim que não precisa de alimento nenhum para aparecer. E eu já não sabia disso? Já, mas acho que agora entendi.
Não estou segura na Europa, em Praga, em São Paulo, em nenhum lugar. Posso redobrar a atenção com minha bolsa, mas isso não me garante imunidade. Porque tem sempre alguém que vai querer ganhar sempre. Se, no Brasil, a miséria (e a impunidade) estão presentes, aqui, elas podem não entrar na conta. Esse homem “que quer ganhar sempre” vai levar o que não é dele; ele vai ficar com suas fotos (talvez até ria delas); vai achar que é muito esperto por ganhar dinheiro às custas dos outros.
Isso é só um exemplo. Há inúmeras situações em que essa pessoa “que quer ganhar sempre” aparece. Ela está em todo lugar e em todas as atividades humanas. Eu não ganho sempre. E você, meu leitor, também não. Mas já ganhei dele e de muitos outros como ele. Porque entendi que eu não preciso ganhar sempre. Isso faz de mim um ser humano melhor que ele. E isso ele não rouba de mim.
Por Juliana Doretto
Por Juliana Doretto
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