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POR QUE OS DOMINGOS CAUSAM ANGÚSTIA?

Os domingos causam angústia e, sem dúvida alguma, são um dia marcado na semana para muitas pessoas. Um dia destinado a ser temido por muitos por causa das emoções que gera. Ao contrário, para outros, o último dia da semana é um dia para recarregar as baterias que se desgastaram e construir seu hoje, seu presente.

Normalmente, conhecemos muitas pessoas que vivem com angústia este dia. Um dia que nos inunda com sua nostalgia e sua verdade. De alguma forma, é como se o domingo nos desse uma bofetada invisível da realidade. “Aqui estou eu, aqui está a sua liberdade, aqui está você e sua existência”. O final de um ciclo, a semana.

É como se nos mostrasse tudo aquilo que evitamos pensar. Como se estivesse abrindo a gaveta que nos esforçamos com tanto cuidado para manter fechada durante toda a semana. Mas, quase como se por magia, sempre há um encontro com os domingos. Um encontro em que esta gaveta se abre e revela parte daquilo que não queremos sentir.

Por outro lado, o domingo é um dia paradoxal porque muitas vezes sentimos um cansaço enorme nele. Nós nos perguntamos como diabos vamos começar uma nova semana com esse sentimento que, em nossa mente, só imaginamos crescer. No entanto, pensamos que o cansaço do domingo normalmente ocorre porque nos fins de semana alteramos nossos hábitos e, portanto, o corpo fica um pouco “deslocado”, em muitos casos por descansar demais ou porque a queda de tensão em relação à semana foi muito forte.

Depois de uma semana de ocupação,
 o domingo emerge com sua solidão

O domingo nos fala de nossa existência, sem distrações ou cegueira impostas. Esta é a sua vida, esse é você. É como se nos despisse e nos deixasse indefesos diante de um futuro incerto. Já nos encarregaremos na segunda-feira de vestir nossas roupas de trabalho. Literalmente e figurativamente. Nos distrairemos daquela angústia que aparece no domingo assim que começarmos a trabalhar.

Na ocupação encontramos paz, encontramos sentido, direção e estabilidade. Somos algo para algo. Ocupamos um lugar fértil no mundo. Nosso pequeno grão de areia ajuda a construir essa sociedade. Uma sociedade cheia de pessoas que temem o momento em que sua existência fique despida. Pessoas que são aterrorizadas, paradoxalmente, pela liberdade.

Erich Fromm já assinalou esta situação em sua obra “O medo da liberdade” (1941). Ele enfatizou esse curioso paradoxo entre desejar nossa liberdade e, por sua vez, temê-la pela responsabilidade que ela implica. Se eu sou livre, então eu sou inteiramente responsável pela minha existência e por minhas escolhas. Este abismo no qual eu devo me construir e me inventar gera uma angústia atroz, além de insegurança e inquietação.

Os domingos causam angústia 
e fazemos o possível para evitá-la

Os domingos causam angústia acompanhada de um vazio. O domingo é um tipo de limbo entre o que somos nesta sociedade, nosso papel como profissionais e o que somos nas profundezas da nossa existência. Nos coloca diante de nossa solidão mais primária, solidão da qual precisamos nos afastar.

Às vezes a afastamos procurando qualquer tipo de companhia, tudo para não estarmos sozinhos. Porque quando estamos sozinhos, muitas vezes a angústia nos invade. E para não sofrermos os efeitos desse furacão, faremos o que estiver ao nosso alcance. Seja dormir o dia todo, ficar com pessoas cuja companhia não nos nutre, ou simplesmente nos mantermos distraídos.

Muitas pessoas viciadas em trabalho não poderiam suportar a ideia de ficar um dia inteiro sem trabalhar. Esse dia envolveria se confrontar com a sua verdade, com a sua existência, com a sua maneira de fugir de si mesmos. A atividade frenética nos enche de vida porque nos mantém ocupados e faz com que nos sintamos úteis, mas também nos afasta de quem somos. Ela nos afasta de nossa solidão, da nossa inquietação.

O trabalho nos distrai 
das profundezas de nosso ser

O trabalho nos ajuda a evitar essa angústia, e é por isso que esta surge com tanta violência aos domingos. O que tapamos com tanta insistência sairá disparado quando menos esperarmos. Por esta razão, é importante observar o que acontece dentro de nós com um olhar honesto; de outro modo, não conseguiremos aproveitar esse reflexo cristalino que nos recusamos a ver.

O fato de que muitos domingos causam angústia é normal. No retorno de uma viagem, no dia anterior à nossa rotina ocupada… Essa tormenta interior tem um significado e um sentido. Sentido que não devemos esquecer. É importante vivermos neste mundo como seres úteis que perseguem e acreditam em um sentido, em um material para construir.

Ao mesmo tempo, é importante atender à nossa natureza como seres humanos. Assim, poderemos entender todas essas reações naturais que emergem abruptamente e/ou repetitivamente de nós. Ouvir, não negar e aceitar nossa angústia a tornará mais suportável e, certamente, mais fértil.


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UMA MULHER LINDA - Luiz Felipe Pondé

A pergunta que mata de medo as mulheres é: 
afinal, o que quer o homem numa mulher?

Recentemente participei de um debate sobre a trilogia "Cinquenta Tons".

Muitas críticas: típico best-seller que identifica um drama universal (o amor) e propõe uma solução "easy" (seja sadomasô light e o casamento virá); a srta. Steele (a heroína) não está a altura de Lady Chatterley (de D.H. Lawrence) nem das irmãs Justine e Juliette (do Marquês de Sade) nem da personagem de "História de O" (de Anne Desclos, sob o pseudônimo Pauline Réage), porque a srta. Steele se vende por um MacBook Pro, enquanto as outras são para valer. Tudo verdade.

O maior pecado de "Cinquenta Tons" é que ele vende uma fantasia: o homem ideal. Christian Grey é rico, bonito, inteligente, viril, experiente. Mas o fato é que as mulheres desejam mesmo homens fortes, viris, sensíveis até a página três, ricos não só de grana. Enfim, "Cinquenta Tons" vende porque fala para todas as mulheres, bobas, ignorantes, cultas ou críticas. Mas, como virou moda mentir, ninguém confessa.

Dias depois do debate, revi um filme idiota americano (como "Cinquenta Tons"), em que um milionário fodão (interpretado por Richard Gere) contrata uma garota de programa (Julia Roberts, ah! Se todas fossem iguais a você, Julia, que maravilha viver...) e acabam se apaixonando. Claro, o filme é "Uma Linda Mulher". A fórmula clara da gata borralheira do sexo que vira a esposa Cinderela.

Mas o longa é muito mais do que isso. Diante da crítica histérica de que é mais um filme machista (que sono...), vale notar que ele faz a pergunta que mata de medo as mulheres: afinal, o que quer o homem numa mulher?

Dirão as apressadas que o homem quer que a mulher traga uma cerveja e venha pelada. Errado: melhor de calcinha e salto alto. Seria a superficialidade masculina o último bastião da ideologia "dominante"? Bastião este que agrada a todas as mulheres porque as acalma: os homens só querem uma bunda!

O filme toca num tema atávico que deixa mesmo as meninas "críticas" de cabelo em pé: seria a garota de programa a mulher ideal?

O personagem de Gere é fodão. Ele sabe o que os fodões sabem: o mundo é repetitivo, e as pessoas são previsíveis. Querem dinheiro, reconhecimento e "serviços", e fazem qualquer coisa para conseguir, embora neguem.

Se, no fundo, todos estão à venda por "um programa" de sucesso, melhor sair com alguém mais honesto: a garota de programa é a mulher menos cara do mundo. Ela "só" quer dinheiro, e isso às vezes é uma bênção. Ela é a mulher ideal porque é a única diante da qual o homem relaxa.

Afinal, o que quer o homem numa mulher? Num dado momento do filme, Gere diz à bela Roberts: "As pessoas são previsíveis, mas você me surpreendeu" (não vou contar detalhes).

Não devemos menosprezar essa fala e o que acontece depois, o apaixonar-se pela garota de programa. Gere sabe o que diz: as pessoas são mesmo previsíveis. Mas hoje a moda é dizer que são todas "únicas".

La Roberts encanta o fodão porque ela não é óbvia, e a mulher óbvia só quer fodões.

Graças a ela, ele rompe o ciclo da desconfiança causada pela obviedade das mulheres, e graças a ele, ela se cansa de ser puta, porque a puta não é uma mulher de verdade.

Os homens sentem que as mulheres querem deles apenas sucesso (em todos os sentidos). Mas hoje virou moda dizer que isso não é verdade. Ficou pior porque continua sendo verdade, mas, quando o cara sente isso, ele deve se sentir um machista porque sabe disso.

O homem quer uma mulher para quem ele não tenha que ser o sr. Grey, mas a mulher não perdoa um homem fraco. A garota de programa perdoa porque "só" quer dinheiro.

A fraqueza masculina aniquila o desejo da mulher. Mas, como essa mulher ideal não existe (assim como o sr. Grey), o ideal acaba ficando colado ao corpo irreal da namorada "paga".

Mesmo sabendo que sr. Grey (um fodão) não existe, as mulheres não suportam homens que não se pareçam com ele, e esta é a verdade suprema de "Cinquenta Tons".

Por fim: uma amiga minha, psicóloga, me disse que muitos dos seus pacientes vêm ao consultório falar de como suas mães (fálicas) destroem seus pais (fracos).

São essas mulheres fálicas, segundo ela, que à noite gemem de solidão sonhando com o sr. Grey.
Óbvio?
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O HOMEM QUE QUER GANHAR SEMPRE - Juliana Doretto


Todas as vezes em que acabo de redigir um texto para este blog, fico tensa. Não (só) com a repercussão do que acabei de escrever, mas sobretudo com a decisão sobre o que escreverei a seguir. Fico matutando, pensando em frases. Anoto ideias em qualquer pedaço de papel. Se não há como anotar, faço esforço para manter o pensamento trancafiado na mente, lembrando-me dele várias vezes, até que ele possa ser libertado num bloco de anotações, no computador, no celular. Minha escrita não é automática. Não tenho esse talento. Ela é cozida em banho-maria. Para esta semana, estava tudo assim, alinhavado. Mas terei que deixar o rascunho de lado e me atirar na escrita imediata. Porque a vida assim pediu. 
   
Estava na Hungria.  Fim de semana em Budapeste, calor de 38 graus. Uma cidade linda, que chama a atenção de sua câmera fotográfica o tempo todo. Antes de um passeio de barco, o vendedor de bilhetes quis saber de onde vínhamos. “Oh, Brasil. São Paulo? Eu ouvi que as taxas de criminalidade são enormes lá, não?” E novamente entra em cena o brasileiro expatriado, que se esforça para quebrar ao menos um pouco os estigmas do Brasil: “Mais ou menos, mas não é exatamente um terror…”. A conversa me fez lembrar da última ida ao Brasil. No táxi, em São Paulo, a caminho de casa, à noite, tive medo de que um assaltante viesse de carro, batesse no vidro e desse um tiro. Nunca tinha tido essa sensação, nem havia motivo especial para esse sentimento naquele momento. Estranhei.

Na volta para Praga, cidade em que caminho pela rua à meia-noite sem nenhuma preocupação, botei a culpa na tranquilidade daqui para a minha paranoia naquela noite em São Paulo. Num lugar em que os caixas eletrônicos ficam nas calçadas, sem proteção, em que o perigo maior são, segundo os locais, os batedores de carteira, talvez tenha relaxado demais. Ainda seguro a bolsa com força, mas não olho para trás sempre que ando na rua e já me arrisquei a levantar da cadeira na biblioteca, deixando o computador ali, como todos os outros fazem, enquanto vou ao banheiro. Confesso também que tive medo de voltar à mesa e não achar mais nada.

Mas o fato é que eu nunca fui assaltada em São Paulo. E os batedores de carteira nunca me pegaram em Praga. Tudo mudou em Budapeste. Foi ali, mas poderia ter sido em outro lugar. Eu não me engano. Para que você entenda por que digo isso, vou começar a história pelo final. Depois de tudo, ouvi a seguinte frase: “Na vida, você não ganha sempre”. Isso não tem a ver com a cidade em que você está. Tem a ver com a vida.

Estávamos no lobby de um hotel, o Courtyard, tomando algo gelado no bar (calor de 38 graus, lembra-se?) enquanto esperávamos o horário de pegar o trem. Na saída, demos falta da mochila. Sumiu. Como? Foram olhar as fitas de segurança. Um ladrão levou. Como? As câmeras não pegaram toda a ação do ladrão, me disse o gerente. E não pudemos ver as imagens, pela lei húngara. Eram quatro pessoas na mesa. Ninguém viu ninguém se aproximando.

Nenhum funcionário do hotel notou algo. Evaporou-se, com nossas passagens de volta, nossas fotos da viagem…

Imagino que o sentimento que venha após o roubo seja semelhante para todos. Uma explosão de contradições: raiva do ladrão, raiva do hotel, raiva de si mesmo, tristeza, ódio, pesar, medo, sensação de invasão, de fracasso, de insegurança, alegria por ninguém ter se machucado e por aí vai. Depois de sentir esse turbilhão, minha primeira reação foi: como você, que vem do Brasil, acostumada a temer coisa pior, pôde ser feita de boba assim. Minha segunda reação foi: não quero viajar mais, tenho medo de acontecer de novo, e agradeço porque não me machuquei. Minha terceira reação acontece agora: ninguém está imune a isso.

Por aqui, a desigualdade não é tão grande quanto no Brasil, e acredito fortemente que isso seja uma grande razão para a baixa criminalidade. Como jornalista, já vi muitas crianças morando em casas feitas com papelão e madeira, com mais buracos que paredes, e que sentem o cheiro do esgoto que passa ao lado o dia inteiro, por anos. Digo, sinceramente, que não me espanto se essa criança começar a roubar. Não se trata de uma justificativa. Como bem sabemos, a miséria nem sempre gera violência. Não quer dizer que não ficarei possessa se isso acontecer comigo, que não vou ter raiva. Mas não podemos negar a revolta que essa situação pode alimentar nessa criança. Só que aqui, sem favelas, sem meninos cheirando cola na rua, sem mulheres com bebê de colo embaixo de viadutos, a criminalidade é também muito crua.

Ok. Aqui, ninguém aponta arma para sua cabeça, eu sei (ou, pelo menos, é mais raro que no Brasil). A “tecnologia” do sequestro-relâmpago, da saidinha de banco e de outros crimes não se estabeleceu por aqui. Eu sei. E sei que isso é bom. Mas o espanto que essa situação me causou foi intenso e me modificou. Você pode dizer que isso ocorreu porque foi a primeira vez que levaram algo meu. Concordo, mas percebo que não foi só isso. Porque o ladrão bem vestido que entrou sem despertar a atenção no lobby do hotel e levou minha câmera não fez isso porque precisava comer. Nem precisava de trocado para comprar “pedra” na cracolândia de Budapeste. E, provavelmente, não tenha certeza da impunidade. Talvez tenha feito isso porque o ser humano tem um lado ruim que não precisa de alimento nenhum para aparecer. E eu já não sabia disso? Já, mas acho que agora entendi.

Não estou segura na Europa, em Praga, em São Paulo, em nenhum lugar. Posso redobrar a atenção com minha bolsa, mas isso não me garante imunidade. Porque tem sempre alguém que vai querer ganhar sempre. Se, no Brasil, a miséria (e a impunidade) estão presentes, aqui, elas podem não entrar na conta. Esse homem “que quer ganhar sempre” vai levar o que não é dele; ele vai ficar com suas fotos (talvez até ria delas); vai achar que é muito esperto por ganhar dinheiro às custas dos outros.

Isso é só um exemplo. Há inúmeras situações em que essa pessoa “que quer ganhar sempre” aparece. Ela está em todo lugar e em todas as atividades humanas. Eu não ganho sempre. E você, meu leitor, também não. Mas já ganhei dele e de muitos outros como ele. Porque entendi que eu não preciso ganhar sempre. Isso faz de mim um ser humano melhor que ele. E isso ele não rouba de mim.

Por Juliana Doretto
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NÃO BASTA FALAR EU TE AMO, PRECISA AGIR EU TE AMO - Mõnica El Baeh

Ele sabia que não tinha razão. Perigava perder a moça. Pensou rápido, sacou um Eu te amo, atirou na direção dela. Deu certo! Inimigo atingido em cheio! Vencida pela emoção, meio tonta pela surpresa, ela se rendeu. Primeiro round: moça na lona, moço 10!

Ele se valia disso, sempre dava certo, nunca falhou. Quer dizer, dava certo por algum tempo. Depois, com a repetição dos sumiços, das pisadas na bola, ia perdendo a força. Os Eu te amo, em confronto com suas atitudes, o pouco investimento, a falta de atenção, já não colavam mais. Ele falava Eu te amo. Mas não agia Eu te amo, não havia amor no que fazia. Amor é olhar brilhando, atenção, interesse, estar por perto do jeito que puder. Isso é amor, entre outras coisas - e nenhuma delas vinha do rapaz.

Ele fazia um estilo ioiô. No impulso que dava para se aproximar, já pegava o embalo para o caminho de volta. Era um perto/longe constante, desesperador para a outra parte.

A moça, já chateada, tinha dado um ultimato. Ele, ameaçado, blefou. Poker face, jogador profissional. Amava mesmo? Jamais saberemos. Nem vem muito ao caso. Porque mais importante do que se enredar nesse emaranhado de emoções ambíguas é pensar se vale a pena essa relação montanha-russa, esse amor de altos e baixos.

Para a moça, no início, valia cada segundo perto. Mas, o vácuo que vinha a seguir, a ausência injustificada, as desculpas ocas que se seguiam e a dor do abandono jogavam tudo por água a baixo. Não compensava. Aquele barco estava fazendo água, ia afundar. Questão de tempo, uma tragédia anunciada.

Impossível dar seguimento à vida quando se vive num mar revolto. Consome toda a energia, o pensamento dissipa, a vida cansa. Ela também percebia que estava e não estava em todo o resto. Porque a dúvida e a ruminação mental não dão trégua. O tumulto interno da insegurança come por dentro, a frustração faz tremer a alma. Será que valia mesmo a pena?

Não valia. Pelo menos para ela, depois de muitas tentativas, já não valia mais. Porque ela tinha uma vida inteira de tarefas e afetos começando a engarrafar, precisava desviar o foco, tomar decisões, dar seguimento às suas coisas. Nenhuma vida deveria ser restrita às idas e vindas de um amor. Era preciso ir além do ele sumiu /ele voltou.

Percebia que aquela relação, que ela nem sabia exatamente o que era, não ia bem. Tinha medos. Medo de dispensar o rapaz e se arrepender. E se aquela fosse realmente A vez em que iria dar certo? E se ele tivesse mesmo mudado? Será que era ela que exigia demais? Se voltou é porque tinha sentido sua falta. Então, gostava, não gostava? E assim passavam as horas, a moça e as horas da vida da moça.

Ela tinha sonhos, muitos e coloridos. Tentava encaixar o rapaz neles. Ele ficava como o sapato de cristal no pé das irmãs da Cinderela. Meio sonho apertado na frente, meio sonho descoberto atrás.

Pensava em tomar uma decisão. Mas, na hora H, o medo olhava no fundo dos seus olhos, de dentro para fora, e ela paralisava insegura. Medo interrompe o caminho, embota o raciocínio, embaça a visão. Medos espreitam no escuro da mente, envenenam a calma. O medo infecta a alma como um vírus faz com o computador. De repente, tudo perde o comando, não obedece mais. Você não consegue mudar de página. Suas teorias apagam. Conhecimentos, que poderiam ser fundamentais para o momento, somem. Você perde dados e experiências anteriormente adquiridas a duras penas.

Medos são venenos que compramos para nós mesmos. Lemos a bula, compreendemos as contraindicações e, em vez de jogar o frasco fora, aumentamos a dosagem, e tomamos religiosamente. Porque me amarro com meu medo, em vez de me soltar e correr? Porque me enveneno de temores, em vez de rumar para a liberdade e a paz?

Não era o rapaz que prendia a moça. Ele mentia, inventava, fazia curvas para fugir de explicações? Sim. Mas quem prendia a moça era a própria moça que, livre para dizer não e partir, permanecia na ratoeira. Tinha a chave, mas não destrancava a porta da prisão.

O coração avisa, a gente cisma em não escutar. A intuição aponta, a gente vira o rosto. Temos sirenes internas e ignoramos o risco de desabamento.
É preciso reagir. Interromper as doses de veneno, pensar diferente, ousar, se permitir uma chance, um novo movimento e ir além. A vida pede coragem. Exige que se escolha o melhor possível, que não se acomode com o que maltrata, destrata ou é ruim. O que dói, o que machuca, não é amor.
Tomara que, quando o rapaz voltar, pela milésima vez, ela não esteja mais lá. Num lampejo de coragem, tenha desfeito as amarras, levantado âncora e zarpado em busca de novos mares. 
Esse seria um final mais feliz.

O DIREITO DE BUSCAR A FELICIDADE - Contardo Calligaris

O ARTIGO SEXTO da Constituição Federal declara que "são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados".

O Movimento Mais Feliz (www.maisfeliz.org) promove uma emenda constitucional pela qual o artigo seria modificado da seguinte forma: "São direitos sociais, essenciais à busca da felicidade, a educação, a saúde etc." (segue inalterado até o fim).

É claro que, se eu dispuser de casa, emprego, assistência médica, segurança, terei mais tempo e energia para buscar minha felicidade. No entanto o respeito a esses direitos sociais básicos não garante a felicidade de ninguém; como se diz, ter comida e roupa lavada é bom e ajuda, mas não é condição suficiente nem absolutamente necessária para a busca da felicidade.

Em suma, implico um pouco com o adjetivo "essencial" no texto da emenda, mas, fora isso, gosto da iniciativa porque, como a Declaração de Independência dos EUA, ela situa a busca da felicidade como um direito do indivíduo, anterior a todos os direitos sociais.

Por que a busca da felicidade não seria apenas mais um direito social na lista? Simples.

A felicidade, para você, pode ser uma vida casta; para outro, pode ser um casamento monogâmico; para outro ainda, pode ser uma orgia promíscua.

Para você, buscar a felicidade consiste em exercer uma rigorosa disciplina do corpo; para outros, é comilança e ociosidade. Alguns procuram o agito da vida urbana, e outros, o silêncio do deserto. Há os que querem simplicidade e os que preferem o luxo. Buscar a felicidade, para alguns, significa servir a grandes ideais ou a um deus; para outros, permitir-se os prazeres mais efêmeros.

Invento e procuro minha versão da felicidade, com apenas um limite: minha busca não pode impedir os outros de procurar a felicidade que eles bem entendem. Por isso, obviamente, por mais que eu pense que isto me faria muito feliz, não posso dirigir bêbado, assaltar bancos ou escutar música alta depois da meia-noite. Por isso também não posso exigir que, para eu ser feliz, todos busquem a mesma felicidade que eu busco.

Por exemplo, você procura ser feliz num casamento indissolúvel diante de Deus e dos homens. A sociedade deve permitir que você se case, na sua igreja, e nunca se divorcie. Mas, se, para ser feliz, você exigir que todos os casamentos sejam indissolúveis, você não será fundamentalmente diferente de quem, para ser feliz, quer estuprar, assaltar ou dirigir bêbado.

Não ficou claro? Pois bem, imagine que, para ser feliz, você ache necessário que todos queiram ser felizes do jeito que você gosta; inevitavelmente, você desprezará a busca da felicidade de seus concidadãos exatamente como o bandido ou o estuprador a desprezam.

Em matéria de felicidade, os governos podem oferecer as melhores condições possíveis para que cada indivíduo persiga seu projeto -por exemplo, como sugere a emenda constitucional proposta, garantindo a todos os direitos sociais básicos. Mas o melhor governo é o que não prefere nenhuma das diferentes felicidades que seus sujeitos procuram.

Não é coisa simples. Nosso governo oferece uma isenção fiscal às igrejas, as quais, certamente, são cruciais na procura da felicidade de muitos. Mas as escolas de dança de salão ou os clubes sadomasoquistas também são significativos na busca da felicidade de vários cidadãos. Será que um governo deve favorecer a ideia de felicidade compartilhada pela maioria? Ou, então, será que deve apoiar a felicidade que teria uma mais "nobre" inspiração moral?

Antes de responder, considere: os governos totalitários (laicos ou religiosos) sempre "sabem" qual é a felicidade "certa" para seus sujeitos. Juram que eles querem o bem dos cidadãos e garantem a felicidade como um direito social -claro, é a mesma felicidade para todos. É isso que você quer?

Enfim, introduzir na Constituição Federal a busca da felicidade como direito do indivíduo, aquém e acima de todos os direitos sociais, é um gesto de liberdade, quase um ato de resistência.

CHIQUE É SER EDUCADO - Leda Nagle

Ainda tem gente que acha que educação de jeitos e de gestos é frescura. Ainda tem gente que acha que uma pessoa educada é pessoa enjoada, entojada ou metida à besta. Ainda tem gente que pensa que delicadeza é dever do outro, ou que saber dos limites é função do outro. Mas não é não. 

É dever de todos e é prazer para todos. A cada dia que passa a pessoa que faz o tipo “eu nasci assim, eu cresci assim” está mais fora de moda e é um incômodo para todos. 

Todo mundo pode aprender a se comportar melhor e a ter atitudes mais generosas. Antigamente, um vizinho batia na porta da casa do outro sem telefonar antes, aparecia quando queria. Hoje em dia, pra muita gente isto é impensável. O interfone pode ajudar você a se educar e a aprender a perguntar se pode dar uma chegadinha na casa da outra pessoa, amiga ou conhecida.

A mesma coisa vale para o telefone. Com o advento do celular você é atendido nos lugares mais improváveis. Custa muito perguntar se o outro pode falar? Na verdade não custa nada,basta pensar antes de começar a falar. 

Com pequenas mudanças, discretas adequações, todo mundo pode ficar mais educado. Para que perguntar a amiga que está mais gorda se ela está grávida, por que não olhar o relógio antes de telefonar? Um dia destes li que um prefeito de uma pequena cidade na Espanha, chamada La Toba, fez uma espécie de decreto educação. Proibiu, por lei, que os 119 moradores da cidade que fica a 120 quilômetros de Madri venham a tossir, espirrar ou bocejar na frente de outras pessoas, sem tapar a boca.

Ah, ia me esquecendo: ele também proibiu soltar pum perto de outras pessoas! Claro que eu sei que não é atribuição do prefeito este conjunto de regras, mas acho que as pessoas podem melhorar se adotarem as regras deste inusitado decreto. 

E a nova “lei” manda não cutucar o nariz, nem chupar os dedos, não debochar de quem tem defeitos físicos nem colocar apelidos, não dar as costas a quem estiver falando, ajudar a quem necessita e a retribuir gestos e ações.

E tem mais no tal decreto: não chupar a colher da sopa fazendo barulho, não falar mal dos outros, ajudar a quem precisa, cumprimentar as pessoas quando chega a um ambiente pequeno, agradecer favores recebidos e não revelar segredos dos outros. 

Quanto a nós, que moramos aqui, poderíamos acrescentar outras regras tipo: atravessar na faixa de pedestre, não avançar sinal, não beber antes de dirigir, dar passagem no trânsito, não usar alto-falantes pra se comunicar, não falar tão alto, não xingar a mãe do outro diante de qualquer insatisfação, respeitar a sexualidade dos outros, não fazer barulho a noite toda. 

Basta querer aprender. É bacana ser educado.

“NÃO QUERO SER FELIZ. QUERO É TER UMA VIDA INTERESSANTE” – Contardo Calligaris

Psicanalista defende que deveríamos nos preocupar em tornar interessante nossa vida de todo dia. Isso implica ter curiosidade, aventurar-se, arriscar mais, lamentar menos e não se proteger das inevitáveis tristezas.

Mais do que buscar permanentemente felicidade máxima, um arrebatamento mágico, deveríamos nos preocupar em tornar interessante nossa vida de todo dia.

É o que defende o doutor em psicologia clínica e psicanalista Contardo Calligaris. Italiano de Milão, depois de mais de duas décadas em conexão direta com o Brasil, já morou na Inglaterra, Suíça, França e nos Estados Unidos e fez muitas viagens. Escreveu mais de dez livros, incluindo dois romances.

Criou até uma série para TV, Psi, no canal a cabo HBO. Diz que, semanalmente, abre mão de “parecer inteligente aos olhos dos pares” e publica toda quinta-feira uma coluna no jornal Folha de S.Paulo. Mais de 100 delas estão no livro Todos os Reis Estão Nus (Três Estrelas). Filmes, fatos, casos de amigos, tudo vira pretexto para traduzir um pouco das teorias da psicanálise, filosofar e provocar reflexão. “Não sou de dourar a pílula”, avisa. Não estranhe, portanto, se sentir um impulso diferente ao terminar de ler esta entrevista. Entrevista concedida a Dagmar Serpa/ revista Claudia.

O que é felicidade hoje?

Não gosto muito da palavra felicidade, para dizer a verdade. Acho que é, inclusive, uma ilusão mercadológica. O que a gente pode estudar são as condições do bem-estar. A sensação de competência no exercício do trabalho, já se sabe, é a maior fonte de bem-estar, mais que a remuneração. Nós temos um ideal de felicidade um pouco ridículo.

Um exemplo é a fala do churrasco. Você pega um táxi domingo ao meio-dia para ir ao escritório e o taxista diz: “Ah, estamos aqui trabalhando, mas legal seria estar num churrasco tomando cerveja”. Talvez você ou o taxista sofram de úlcera, e não haveria prazer em tomar cerveja. Nem em comer picanha.

Mesmo que não vissem problema, pode ser que detestassem as pessoas lá e não se divertissem. Em geral, somos péssimos em matéria de prazer. Por exemplo, estamos sempre lamentando que nossos filhos seriam uma geração hedonista, dedicada a prazeres imediatos, quando, de fato, vivemos numa civilização muito pouco hedonista. Por isso, nos queixamos de excessos e nos permitimos prazeres medíocres ou muito discretos.

Mas continuamos acreditando que ser feliz é ter esses prazeres que não nos permitimos. E agora?

Ligamos felicidade à satisfação de desejos, o que é totalmente antinômico com o próprio funcionamento da nossa cultura, fundada na insatisfação. Nenhum objeto pode nos satisfazer plenamente.

O fato de que você pode desejar muito um homem, uma mulher, um carro, um relógio, uma joia ou uma viagem não tem relevância. No dia em que você tiver aquele homem, aquela mulher, aquele carro, aquele relógio, aquela joia ou aquela viagem, se dará conta de que está na hora de desejar outra coisa. Esse mecanismo sustenta ao mesmo tempo um sistema econômico, o capitalismo moderno, e o nosso desejo, que não se esgota nunca. Então, costumo dizer que não quero ser feliz.. Quero é ter uma vida interessante.

Mas isso inclui os pequenos prazeres?

Inclui pequenos prazeres, mas também grandes dores. Ter uma vida interessante significa viver plenamente. Isso pressupõe poder se desesperar quando se fica sem alguma coisa que é muito importante para você. É preciso sentir plenamente as dores: das perdas, do luto, do fracasso. Eu acho um tremendo desastre esse ideal de felicidade que tenta nos poupar de tudo o que é ruim.

O que adianta garantir uma vida longa se não for para vivê-la de verdade? É isso que temos de nos perguntar?

Quem descreveu isso bem foi (o escritor italiano) Dino Buzatti, no romance O Deserto dos Tártaros. Conta a história de um militar que passa a vida inteira em um posto avançado diante do deserto na expectativa de defender o país contra a invasão dos tártaros, que nunca chegam. Mas tem um lado simpático na ideologia do preparo. É que está subentendida a ideia de que um dia a pessoa viverá uma grande aventura. Mas o que acontece, em geral, é que a preparação é a única coisa a que a gente se autoriza.

Então, pelo menos há um desejo de viver uma aventura?

Mas os sonhos estão pequenos. A noção de felicidade hoje é um emprego seguro, um futuro tranquilo, saúde e, como diz a música dos aniversários, muitos anos de vida. Acho estranho quando vejo alguém de 18 anos que, ao fazer a escolha profissional, leva em conta o mercado de trabalho, as oportunidades, o dinheiro… Isso nem passaria pela cabeça de um jovem dos anos 1960.

A julgar pela quantidade de fotos colocadas nas redes sociais de pessoas sorridentes, elas têm aproveitado a vida e se sentem felizes. Ou, como você aborda em uma crônica, hoje mais importante do que ser é parecer feliz?

O perfil é a sua apresentação para o mundo, o que implica um certo trabalho de falsificação da sua imagem e até autoimagem. Nas redes sociais, a felicidade dá status. Mas esse fenômeno é anterior ao Facebook. Se você olhar as fotografias de família do final do século 19, início do 20, todo mundo colocava a melhor roupa e posava seriíssimo. Ninguém estava lá para mostrar que era feliz. Ao contrário, era um momento solene. É a partir da câmera fotográfica portátil que aparecem as fotos das férias felizes, com todo mundo sempre sorridente.

E a gente olha para elas e pensa: “Eu era feliz e não sabia”.

Não gosto dessa frase porque contém uma cota de lamentação. E acho que a gente nunca deveria lamentar nada, em particular as próprias decisões. Acredito que, no fundo, a gente quase sempre toma a única decisão que poderia tomar naquelas circunstâncias. Então, não vale a pena lamentar o passado. Mas é verdade que existe isso.

As escolhas ao longo da vida geram insegurança e medo. Em relação a isso, você diz que há dois tipos de pessoa: os “maximizadores”, que querem ter certeza antes de que aquela é a opção certa, e a turma do “suficientemente bom”. O segundo grupo sofre menos?

Tem uma coisa interessante no “maximizador”: é como se ele acreditasse que existe o objeto mais adequado de todos, aquele que é perfeito. Mas é claro que não existe.

A busca da perfeição não gera frustração, pois sempre haverá algo que a gente perdeu?

Freud dizia que o único objeto verdadeiramente insubstituível para a gente é o perdido. E não é que foi perdido porque caiu do bolso. Ele fala daquilo que nunca tivemos. Então, faz sentido que nossa relação com o desejo seja esta: imaginamos existir algo que nunca tivemos, mas que teria nos satisfeito totalmente. Só não sabemos o que é.

Como nos livrar desse sentimento?

Temos de tornar cada uma de nossas escolhas interessante. Isso só é possível quando temos simpatia pela vida e pelos outros – o que parece básico, mas não é no mundo de hoje. Não por acaso, o grande espantalho do nosso século é a depressão. A falta de interesse pelo mundo e pelos outros é o que pode nos acontecer de pior.

NÃO FALE COM AS PLANTAS! (ELA GOSTARIA DE TER ESCRITO, EM SUA LÁPIDE) – Eliane Brum

Tudo ia muito bem, tudo ia muito bom. Eu acordava pela manhã, espichava meus braços sedosos ao sol em movimentos lentos. Devotava meus dias a essa carícia repetitiva e sem pressa. E, menina de apartamento, sem saber de florestas, eu não me incomodava em vez por outra bater o rosto na janela. A água chegava em dias certos, duas vezes por semana, suficiente porque eu nunca fui desperdicenta. Limitava-me a sugar o suco da terra com deleite e me distraía com uma ou outra abelha se estatelando no vidro sem poder entrar na minha concha de donzela. Ignorante dos prazeres do sexo, eu apenas me divertia com a ansiedade rústica de meus pretendentes. Uma vez por ano, ou até duas, dependendo do meu humor, eu fazia uma flor rosada que enlouquecia a vizinhança por algumas semanas. E, depois, voltava à nudez habitual em meu reino pequeno e circular, mas todo meu.

Assim foram passando os dias, ao que parecia para sempre, quando dei um salto. Em pensamento, porque meus movimentos são tão lentos que alguns acreditam que nem me movo. Estava eu fazendo uma fotossíntese relaxante quando ouvi um som que congelou minha seiva. “Queriiiiiiiiiida, como está você neste dia ensolarado?”

Olhei para um lado, olhei para o outro. Meus vizinhos se faziam de mortos. Uma violeta, que parecia uma viúva de velório, e uma comigo-ninguém-pode com complexo de capitão Nascimento. De novo olhei para um lado, olhei para o outro. Era comigo.

E a voz de serra elétrica continuava. Foquei meus olhos estrábicos num ângulo totalmente novo, já que eu sempre olhava para fora, jamais para dentro. E lá estava um ser estranhíssimo, com um chumaço de um vermelho berrante no topo, parecendo uma flor de cardo, e dois galhos compridos que se mexiam sem parar e terminavam em pontas de um cor-de-rosa que eu nunca havia visto nas redondezas. Mas o mais assustador era um buraco cheio de espinhos brancos pelo qual saía uma voz que agora me dizia: “Óin óin óin como a minha queridinha está linda toda florida”.

Oi?

E foi assim, senhoras e senhores, que minha vida começou a murchar. A tudo a gente se acostuma quando não dispõe de muita mobilidade. Mas vocês não queiram saber o que é uma voz falando e falando e falando sem que você possa empreender uma retirada leão da montanha. Ou simplesmente sair sapateando para a esquerda até estar a uns 100 quilômetros de distância. Mentalmente eu imaginava torturas terríveis para calar aquela voz. Desejava enfiar um saco de minhocas frescas naquela boca até que ela se engasgasse e morresse. Mas, impotente, eu nada podia fazer.

“É a nossa dona”, sussurrou a comigo-ninguém-pode uma manhã, em que eu estava particularmente desesperada. Que dona, meu amigo? Pirou? Eu só sou uma flor num vaso. Quem tem dono é cachorro!

O ser aparentemente concordava comigo, já que dizia: “Dá um sorriso pra mamãe, sua fofolete!”. Mas eu não poderia compreender o conceito de mãe. Mesmo assim, descobri depois, era bastante precoce neste aspecto, porque imediatamente eu quis matá-la. Mas, pobre de mim, com que braços? Eu havia sido feita para beber água, fazer a minha fotossíntese, abrir uma flor de tempos em tempos. Tinha vindo ao mundo que nem o poeta, distraída.

Logo, ela não apenas falava comigo, como começou a me contar a sua vida. Lembro bem. Era um dia chuvoso, e eu não gosto muito de dias chuvosos, porque quando você mora dentro de um apartamento, é possível sentir o sol, mas não a chuva. Então, dias chuvosos podem ser tediosos. Aquele não foi, e eu desejei que tivesse sido. A vida é assim, a gente nunca sabe que era feliz até ela piorar. Ops, tô repetindo uma das frases dela. Ahhhhhhhhh!

O fato é que lá estava eu, curtindo uma melancolia básica, quando, não mais que de repente, estremeci:

— Meu amor, eu vou te contar que tipo de pessoa eu sou…

De novo, olho para um lado, olho para o outro, a violeta de defunto até tinha virado de costas. Era comigo. Por que eu, meu deus do céu? Eu por acaso tinha sido um gafanhoto em outra vida pra merecer esse carma? A voz continuava…. estridente.

— Eu sou uma pessoa…

E assim foi, dia após dia. O ser me contava seus almoços na firma, como a vagabunda que trabalhava ao lado dela mostrava os peitos pro chefe pra sair mais cedo, o que o fulano-disse-e-ela-que-não-levava-desaforo-pra-casa-retrucou, e até, não sou capaz de reproduzir aqui, a não vida sexual dela. Nunca mais pude olhar para aquela abelha operária que batia no vidro do mesmo jeito. Então é isso que você quer de mim, sua pervertida?

O fato é que meu mundo caiu, mas eu não conseguia me derrubar da janela por mais esforço que fizesse. Bem que tentei me jogar lá do oitavo andar, me deslocando toda para fora de modo a desequilibrar o vaso, que agora tinha se transformado em prisão. Mas acabei descobrindo que levaria um milhão de anos. Então, tentei o sentido contrário. Passei a fugir do sol, na esperança de não conseguir mais fazer a fotossíntese.

O imprestável do meu organismo, porém, foi treinado ao longo de milhões de anos de evolução para funcionar contra a minha vontade. Bastava eu dormitar um pouco e quando despertava, de susto, lá estava eu sugando a terra e o sol à revelia de mim. Um paradoxo filosófico, você poderia pensar, mas de nada vale a filosofia quando você não tem nenhuma dúvida, nada, apenas a certeza de que a única saída é o suicídio. Mas como?

E assim foi se arrastando o tempo, com a coisa me torturando dia após dia.

— Olha, só, pitoquinha, troquei o esmalte! Esse aqui se chama Paixão Selvagem.

Grata pela informação.

Me enche de bala, seu capitão Nascimento de araque, eu gritava para a comigo-ninguém-pode. Em vão. Xingava a coisa, mas ela não me enxergava. Vá comprar o dicionário do Werneck, sua clichê ambulante!, eu gritava. Mas tudo o que interessava a ela era a minha imobilidade.

Uma tarde a ouvi dizer para uma outra coisa, fora do meu campo de visão.

— Não vê como ela está bonita? Eu comecei a conversar com ela, e ela desabrochou. Essa aqui, se você quer saber, é a minha melhor amiga. Não tem inveja, não trai, não cheira mal, não exige nada a não ser esse carinho que eu dou pra ela. Comece a falar com as suas plantas, você vai ver… é uma terapia.

Não!!!!! Eu gritei de novo, mas ninguém me ouviu. Ninguém nunca me ouviu. Eu estou péssima, dona coisa, mal paro em pé. Sou só caule e olheiras. Perdi todas as folhas e faz meses que não abro uma flor, você não vê? Tudo o que eu espero é que um fungo acabe de vez com minha existência miserável.

Mas a morte pode levar tempo demais se você continua sendo alimentada — e suas raízes o traem. Então, um dia, quando ela abriu a boca para me contar sobre o joanete da vizinha, aconteceu. Alho, ela comeu uma pizza de alho.

Foi meu último pensamento neste mundo.

EXISTEM PESSOAS QUE FEREM E PESSOAS QUE CURAM - Ivonete Rosa

Existem pessoas que tem o dom de curar, outras, o dom de machucar. Lendo esse texto, acredito que, naturalmente virão à sua mente algumas pessoas, tanto curadoras, como ofensoras. 

Imagine alguém que está sempre sorrindo e que tem sempre uma fala positiva, que sempre elogia, que tem um abraço gostoso. 

Quem veio à sua lembrança? E agora, imagine alguém rabugento, que adora jogar um balde de água fria na empolgação das pessoas. Lembrou de alguém?

Não tem como passarmos pela vida sem nos depararmos com esses dois perfis de pessoa. 

As pessoas amargas sentem-se fortemente recompensadas quando percebem que machucou alguém. Parece que a alegria delas é nutrida pelo desgosto do outro. 

Quer acabar com o dia de uma pessoa amargurada, compartilhe uma alegria sua com ela. Ela vai tratar de te convencer de que você está delirando, que sua alegria não é para tanto, que você pode “cair do cavalo”…que você precisa manter os pés no chão…etc.

É como se a alegria do outro fosse um espinho na alma dela. São pessoas com as quais, se pudéssemos, evitaríamos qualquer contato. E quando estamos fragilizados, essas pessoas causam um verdadeiro estrago no nosso emocional,agindo como verdadeiros vampiros, parece que elas captam a nossa vulnerabilidade e fazem a festa. 

Se você emagreceu e está feliz, ela vai fazer questão de te dizer que você ficou com cara de doente e que estava melhor quando estava gorda. 

Se você foi aprovado num concurso público, ela vai te dizer que ouviu dizer que o concurso teve fraude e que vai ser anulado. Enfim, ela vai ter sempre um problema para cada solução.

Somente quando nos tornamos mais maduros é que vamos adquirindo uma espécie de imunidade à essas pessoas, daí elas não exercem mais nenhuma influência sobre as nossas emoções, pois passamos a enxergá-las como elas de fato são, verdadeiros enfermos espirituais e emocionais. Pessoas feridas ferem outras. Simples assim.

Em contrapartida, existem aquelas pessoas que são puro bálsamo, são um verdadeiro sol mesmo nos dias nublados das nossas vidas. Pessoas que nos estendem a mão, que nos encorajam, que nos trazem à memória o que temos de bom e o que deu certo em nossas vidas. São verdadeiras bússolas divinas que nos norteiam quando estamos desorientados. 

É uma delícia ter por perto quem acredita em nós, quem nos aceita e quem nos acolhe.


Essas pessoas serão as primeiras a serem lembradas por nós quando estamos em alguma dificuldade. Elas nos encorajam e elas nos lembram que a dificuldade vai passar. 

Por vezes, só precisamos nos lembrar disso, que nada é eterno e que dias bons e ruins passam. Quando alguém compartilha algo delicado conosco, nos sentimos honrados, afinal, no mínimo, essa pessoa confia em nós. Que sejamos dignos dessa confiança. 

Que saibamos lidar com a vulnerabilidade do outro. Que sejamos calmaria em dias de tempestade.

A FAVOR DO TÉDIO - Contardo Calligaris

O que é mais 'educativo' para as crianças? 
A diversão? 
Ou a chance (forçada) de se entediar?

Alguns livros recentes tratam dos malefícios de nossa constante vontade de encontrar diversões. Como sugere o título de um deles, "The Distraction Addiction", de Alex Pang (Little, Brown and Company), a vontade de se distrair seria um vício, uma forma de dependência.

Também, desde o começo do ano, leio artigos de revista sobre "os surpreendentes benefícios do fato de sentir tédio".

Os livros não me pareceram imperdíveis. E os artigos nas revistas de grande circulação citam "pesquisas" por ouvir dizer. Mas tanto faz. O conjunto manifesta um novo clima, segundo o qual a necessidade de sermos entretidos e estimulados continuamente não tornaria nossa vida mais rica e variada --ao contrário, é possível que essa dispersão empobreça nossa experiência.

Já foi dito por evolucionistas que a sorte de nossa espécie foi sua fraqueza: enquanto passávamos horas a fio escondidos e calados nos arbustos, esperando as feras passarem, a imobilidade e o tédio forçados produziram o surgimento da consciência, do pensamento e da fantasia. Que tal aplicar essa hipótese no campo da educação?

O que é mais "educativo" para as crianças? A diversão? Ou a chance de se entediar?

Umberto Eco atribui ao filósofo Benedetto Croce uma frase que ele cita com frequência: "O primeiro dever dos jovens é o de se tornar velhos". Esse slogan não tem como ser muito popular numa época em que o primeiro dever dos velhos é o de eles parecerem jovens. De fato, nesta nossa época, os adultos não ajudam os jovens a envelhecer; eles preferem mantê-los na mesma criancice que eles desejam para si.

Há pais agentes de viagem e relações-públicas, que, a cada dia, organizam programas "divertidíssimos" para seus rebentos. Esses pais procuram amigos para brincadeiras coletivas e oferecem, a jato contínuo, coquetéis de televisão, cinema, compras, videogames e até livros: qualquer coisa para evitar que a criança conheça a solidão e o enfado. Sabe-se lá quais pensamentos surgiriam numa mente entediada, não é?

Certo, é preciso estimular as crianças para que elas se desenvolvam na interação com o mundo. Mas o problema é que, sem tédio maçante, ninguém, criança ou adulto, consegue inventar para si uma vida interior. E para que serve uma vida interior? Se forem pensamentos aos quais recorremos quando não temos nada para fazer, não é mais simples a gente se manter ocupado e não precisar da tal vida interior?

O problema é que há uma boa parte da vida exterior que, sem vida interior, é totalmente insossa. Tomemos o exemplo do erotismo.

Está aberta até dia 12 de janeiro, no Metropolitan de Nova York, a exposição "Balthus: Cats and Girls" (Balthus: gatos e meninas). O catálogo, com o mesmo título, contém uma excelente introdução da curadora, Sabine Rewald.

Balthus (1908-2001) pintava com frequência gatos e meninas, juntos ou separados. Os gatos são ótimos administradores de seu tédio. Eles sabem se divertir quando a ocasião se apresenta, mas também sabem não fazer nada. Nisso, eles batem os cachorros, que sempre parecem aliviados quando finalmente têm algo para fazer.

Agora, esse dom da gestão do tédio, os gatos têm em comum com as meninas que Balthus pinta, que são todas, antes de mais nada, entediadas.

As longas sessões nas quais posavam para o pintor talvez servissem deliberadamente para produzir o tédio que Balthus queria pintar. Há as meninas quase vencidas pelo sono no meio da leitura, há as que jogam paciência no silêncio palpável da tarde numa casa de província francesa --todas parecem entregues a devaneios inquietantes.

A gente pode se indignar com a diferença de idade entre Balthus e suas modelos adolescentes, mas o fato é que os retratos das meninas são uma extraordinária ilustração de que o tédio e a indolência são as portas que levam aos pensamentos impuros.

Ou seja, é bem provável que a criança entediada tenha uma vida erótica adulta mais interessante do que a criança que cresceu de joguinho em joguinho, de amiguinho em amiguinho, de diversão em diversão.

O que me leva, aliás, a uma suspeita. Os pais que combatem o tédio dos filhos talvez estejam combatendo possíveis "pensamentos impuros" --videogames, filmes, amigos, tablets e futebol, tudo contra o espantalho da masturbação, que espreita a criança entediada e solitária.

Agora, sem pensamentos impuros na criança, o que será o erotismo do adulto no qual essa criança se tornará? Um erotismo sem vida interior, talvez.

A Casa Encantada & À Frente, O Verso.

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